1. POST-SCRIPTUM
A morte de Ruy Belo é uma das efemérides que assinalamos nesta Primavera de 1998. E, como marca de um discurso público das efemérides, poderíamos ter a sedução do recurso a enunciados do tipo: (i) celebramos uma morte que aconteceu no Verão (a 8 de Agosto), na Primavera…porque até como dizia o poeta, a autêntica estação é «uma estação na outra» (cf. o poema «A autêntica estação», I: 177); (ii) ou então, poderíamos dizer que ninguém melhor do que Ruy Belo para uma celebração fúnebre, um poeta que tanto desejou a morte (com tanta veemência como a vida – realidades comutáveis na sua obra); (iii) ou, ainda, poderíamos afirmar que, apesar de falecido, Ruy Belo é – cada vez mais – um dos poetas bem vivos da recente poesia portuguesa, como ele dissera de outro poeta português (o outro, por antonomásia; cf. I: 175). A possibilidade deste tipo de tentações exibe, do meu ponto de vista, o quanto a poesia (um supor: a de Ruy Belo) é ocasião para a citação. É um autor citável. No sentido, até, que o próprio poeta entendeu a citabilidade – passe o neologismo – da poesia de um poeta como Pessoa, de cuja poesia e citação afirma estarem já «integrada[ s] porventura no circuito publicitário da sociedade de consumo e nos interesses oficiais da comunidade» (III: 270). O risco do embalo neste jogo do classicismo ocasional (cf. DIOGO, 1997: 9), impõe, pelo contrário, o exorcismo deste tipo de trabalhos de luto comemorativos – e este falso começo pelo qual acabo de começar é, no fundo, como o padre-boxeur do Exorcista que assumiu o demónio para depois o suicidar.
2. DA EXTRAVAGÂNCIA (HAGIOGRÁFICA) DE RUY BELO
Mal comparado (ou suspendendo a lógica da comparação útil), todas as literaturas prestam culto aos seus «puros» como se de um santoral se tratasse. Começo, pois, por uma impertinência. A primeira edição do Flos Sanctorum de Frei Diogo do Rosário a arrumar os santos «pelos dias dos seus felizes trânsitos», data de 1647. Esta nova disposição, quero crer, assinalou com certeza uma leitura diferente da colecção hagiográfica: a datação, por si só, a par da necessidade pragmática de ordenar a explosão de santos seiscentista, indicia uma maior possibilidade de manipular socialmente o sentido sacrifical do seu passamento. A cronologia do falecimento instala o santo no tempo humano que lhe celebra a morte, espectacularizando-a ou integrando-a num regime de ritualização social. Deste modo, cada dia do ano (em que um santo se cristifica, ou re-presenta o padecimento à imagem de Cristo) é celebrado com uma morte no mundo e um nascimento na bem-aventurança do outro mundo. Mal comparado, assinalar o «feliz trânsito» de Ruy Belo, num certo sentido, é um gesto ritual pelo qual o confirmamos no lugar que ocupa na nossa república das letras. Pretendo, pois, apresentar breves razões do que poderia ser uma coda abrupta: ser clássico é um estado de bem-aventurança.
Tratarei então, dito de outro modo, de observar como o poeta entrou em cena. Joaquim Manuel Magalhães, a quem devemos dos ensaios mais penetrantes e seminais sobre o autor de Boca Bilingue, publicou um conhecido texto na Colóquio/Letras, em 1978, logo após a morte de Ruy Belo. Nos primeiros parágrafos, o poeta é já o outro fantasmático ou, se quisermos, hagiográfico, apresentado como autêntico espelho de virtude. Talvez não seja o primeiro, mas é verdadeiramente o de Joaquim Manuel Magalhães um texto-pedra-de-toque na canonização inevitável de Ruy Belo pelo peso específico da sua grandeza. Uma grandeza hoje consensual, há que dizê-lo.
Seja-me permitido o abuso da citação: «Conto esta história para ilustrar uma grandeza alheia às invejas ‘poéticas’ tão típicas do nosso meio. A sua recusa à competição e ao fanatismo da própria imagem afastá-lo-iam da boca de cena e fariam dele um dos nossos poetas maiores mais indiferentes à necessidade de holofotes críticos voltados sobre a obra que criava, em que acreditou a ponto de lhe ter sacrificado em absoluto a saúde, a tranquilidade diária, quase a própria subsistência económica» (MAGALHÃES, 1978: 46). Interessa-me sublinhar esta ideia de um poeta «fora de cena». Note-se como Joaquim Manuel Magalhães remete para a extravagância – aqui entendida no sentido hagiográfico – do poeta, um poeta que se auto-descentrou em relação ao seu tempo. Nele, a humilitas («não peço ou posso privilégios de poetas», dirá, I:194) substitui a vanitas (e as invejas) da cena pública da poesia portuguesa coeva. Ora é precisamente este gesto voluntário de saída de cena (Ruy Belo, creio, levou toda a vida a sair de cena) que o faz entrar no espaço da exemplaridade. Reconhecerá o próprio poeta que «pouco represento no contexto literário português» (III: 274) ou, ainda, «Marginal, profundamente marginal. O poder não me interessa» (III: 277). O gesto de Ruy Belo vem, na óptica do autor de Os Dois Crepúsculos, moralizar o espaço da praxis poética. A sua extravagância, e não há qualquer paradoxo, é o que o coloca nesse lugar do exemplum, mais central que o próprio centro.
O primeiro impulso exegético de Joaquim Manuel Magalhães assenta numa discursividade verdadeiramente simbólica (talvez não seja abusivo ver no seu texto-tributo de 1978 a colagem de Ruy Belo à imagologia de outros poetas excêntricos da Tradição). Uma simbólica que é, também, um dos modos do texto posfacial do 1º volume da poesia completa do autor de Aquele Grande Rio Eufrates, publicado em primeira edição em 1981: «Li os números de dois bilhetes de autocarro, deixados esquecidos por Ruy Belo numa edição do seu primeiro livro, anotada por sua mão. Um era da carreira entre a Póvoa e Vila do Conde; o outro, da Carris, para qualquer parte de Lisboa» (MAGALHÃES, 1984: 217).
Para o autor de Os Dias Pequenos Charcos, uns acidentais bilhetes de autocarro constituem restos biográficos que transcendem a sua condição material. Acertadamente, vê neles a marca visível (são restos com aura, ou se quisermos, relíquias) da condição deambulatória da poesia de Ruy Belo. Em dois sentidos, pelo menos, Joaquim Manuel Magalhães (por outro lado, um coleccionador – e nós com ele – no sentido benjaminiano) vai ao encontro do poeta: (i) como o autor de Aquele Grande Rio Eufrates, o crítico-poeta presta atenção à «unha pequenina» a que Ruy Belo sempre quis regressar (cf. «Corpo de Deus», I: 178); (ii) o próprio Ruy Belo, praticante – como Joaquim Manuel Magalhães – da exegese dos outros e de si próprio, considerou ser a marca transumante condição intrínseca do humano (cf. «Saudação a um yankee», II: 65; ou III: 147). Uma transumância que o poeta chega a protagonizar na seguinte cena: «eu o poeta instalado o mais que muito aburguesado / um colectivo passageiro num eléctrico» (de «O poeta num eléctrico», TT, II: 59). Quem diz eléctrico diz autocarro e nós voltamos a ver o filme.
Também o ensaio que Eduardo do Prado Coelho dedicaria ao primeiro volume da poesia completa de Ruy Belo seguiu a linha do exemplum. A exemplaridade do poeta inscreve-se, aí, no espaço da aula. Num primeiro momento do texto, na aula universitária. Eduardo do Prado Coelho mostra-nos um poeta anti-academicista, um anti-academicismo que subverte o statu quo universitário. O mais interessante é que o autor de Mecânica dos Fluidos coloca a questão em termos de «dentro» e «fora». Ruy Belo, neste sentido, está do lado de «dentro» e os professores do lado de «fora». A partir daqui, o crítico, com uma notável percepção, remete para o que considera ser o núcleo da poesia beliana: o «caminho de ida para a escola» seria a sua cena primitiva (cf. COELHO, 1984: 154). Assim, ainda que sem ânimo biografista, o crítico cola biografia e poética. Bio-grafia, ou se se quiser, o crítico narrativiza a exemplaridade de Ruy Belo.
Estas narrativizações de cunho exemplarizante são talvez uma manifestação (ou alegorias) do lugar «hagiográfico» de Ruy Belo no contexto da poesia portuguesa mais recente. O papel que se lhe reserva na grande cena da poesia portuguesa contemporânea assenta na singularidade. Num certo sentido, a sua obra é exemplar. Dito de outro modo, como os grandes da Tradição, a obra de Belo revela essa distância óptima em relação a modas e discursos, ou mais esteticistas ou mais ideológicos. Vê-se na obra beliana – diríamos – como que uma virtude do meio termo, de tal forma que é bitola de revisão histórica de excessos ou falhanços.
Assim, a obra de Ruy Belo é uma obra de continuidades. A influência da poesia da década de 50 foi destacada por Fernando Guimarães (cf. GUIMARÃES, 1983: 92). Aproxima-se, então, do núcleo de poetas católicos dos anos 50, como Rui Cinatti ou Pedro Tamen. Neste aspecto, ainda, capitaliza a irmandade com uma figura como a de Eliot, cuja influência foi destacada por Joaquim Manuel Magalhães (cf. MAGALHÃES, 1978: 47). Jorge de Sena é outra das influências reconhecidas pelo próprio poeta. Uma influência, a do autor de Metamorfoses, sem ansiedade, pois Ruy Belo considerava-se um poeta francamente influenciável: «Sim, Jorge de Sena influenciou-me. Como toda a gente me influenciou» (III: 466).
Por outro lado, a sua obra não deixou de vibrar com o impacto do Modernismo. Osvaldo Manuel Silvestre (situando o poeta numa conjuntura tardo-modernista), recorrendo a Adorno, mostrou como Ruy Belo não deixou de ser seduzido pelo imperativo do Novo (SILVESTRE, 1997: 9). Como diria o próprio poeta «A cada momento se tem de inovar, condição imprescindível para se ser fiel à tradição» (III: 87). Ruy Belo soube bem – e aceitou bem – que à poesia contemporânea é inevitável este diálogo com o Modernismo. Deixou, de facto, no ar a seguinte pregunta: «Poder-se-á ser poeta hoje sem ser poeta moderno?» (III: 218). E viu o leitor de poesia coevo como um leitor «educado numa tradição que não pode deixar de passar pelo modernismo» (III: 241). Este reconhecimento é perfeitamente conciliável com o facto de que o seu particular diálogo com o alto-modernismo lhe ser (no que a eventual recepção se refere) favorável. Sobretudo – embora a questão não se resuma a isto – a inteligibilidade da sua obra distancia-se da adorniana «méthexis nas trevas» (cf. ADORNO, 1982: 156). Compare-se, a bem do meu argumento, a poética e a poesia de Ruy Belo com a poética e a poesia (obscuras) de outro nascido em 61, Herberto Helder. Se neste temos uma como que adesão explosiva (ou implosiva) ao moderno, em Ruy Belo o modernismo é incorporado como que em eclipse. É um modernismo pacífico. Assim, ainda que o próprio Belo teça considerações em sentido contrário (cf. I: 190), a inteligibilidade da sua obra – e algo tem que ver com isto a «preocupação de sentido», como lhe chama Fernando Guimarães (cf. 1989: 93) – confere-lhe o dom da comunicabilidade. Jorge de Sena abordou a poesia nestes termos, recordando a incomunicabilidade dos «experimentalismos ocidentais» (cf. Sena, 1977: 250). O diálogo que a poesia Ruy Belo estabelece com a vanguarda, e recorde-se que a sua é uma poesia que se instala na década de Poesia 61 e Poesia Experimental, poderá ser aproximado do que José Guilherme de Merquior chamou «vanguarda pacificada», marca – no entender do mesmo crítico – que entra dentro da configuração do pós-modernismo enquanto «novo estilo histórico» (cf. MERQUIOR, 1979: 6).
Por outro lado, Ruy Belo aproximou-se quanto baste ao sentido intervencionista da poesia neo-realista (sobretudo, purgando-o das suas fraquezas demagógicas). O sentido do compromisso de Ruy Belo com os problemas da História (ou melhor, do momento histórico que lhe tocou viver) nada tem que ver com o ideologismo e o pragmatismo do ainda então sobrevivente neo-realismo. Diz, no prefácio de Homem de Palavra[s]: «Em meu entender, a poesia de intervenção tem de partir de um grande sentido de justiça ou de revolta que o poeta fez seus, como o amor num poema de amor, e tem de ser discreta se não quer ser demagógica» (I: 133). Em Ruy Belo, não se trata tanto de uma consciência porventura trágica da falência daquele modelo. O poeta situa-se já numa posição de descrença apriorística dos discursos ideológicos. Contudo, substitui o tipo de engagement proposto pela opção neo-realista por um humanismo à Dostoievski, como ele próprio reconheceu. A palavra poética é, pela novidade e originalidade intrínsecas, revolucionária, ou se quisermos, visa o melhoramento da espécie humana.
Logo no primeiro livro publicado se enuncia o poder da voz do poeta na polis, um poder na verdade ameaçador pois é um contra-poder: «cuidado com o poeta na cidade / Não há nem pode crescer na rua / árvore mais inútil que a palavra do poeta» (do poema «Aquele grande rio Eufrates», AGRE, I: 60). A espontaneidade natural da árvore contrasta com a visão utilitária da paisagem urbanizada. A cidade, espaço do desenraizamento e da alienação existencial, conta ainda com o poeta como voz – inútil pois não colabora neste povoamento – ameaçadora. O contexto desta palavra revolucionária é já em Aquele Grande Rio Eufrates, o de um país pouco receptivo à poesia (e não só). Neste livro ainda se não trocou esta missão do poeta na cidade pela alegria – irónica – de «ser poeta português» que teremos em Homem de Palavra[ s] . Ainda que ninguém saiba «como ainda é possível a poesia / num país onde nunca ninguém viu / aquele grande dia diferente» (do poema «Desencanto dos dias», AGRE, I: 47). Todavia, desde o primeiro livro Ruy Belo não deixa de remeter para o esfriamento do poema (do seu impulso revolucionário) quando se espraia pelo domínio público. A poesia é, nesse domínio, tão cotizável como qualquer outro objecto de troca: «Os versos que erguemos ao longo dos passeios / coagularam em ilhas que a indiferença / rodeou de silêncio e ao roçar no asfalto / até adquiriram seguras cotações / nos mercados onde vendem as palavras» («Aquele grande rio Eufrates», AGRE, I: 67).
Nova ressonância desta questão viria a emergir em Transporte no Tempo. Aí, surge-nos a figura do poeta público que pactua com o «tempo detergente». A atitude do sujeito poético é a de se demarcar com veemência deste tempo e deste poeta: «Odeio este meu tempo detergente / de uma poesia que discreta até se erótica antigamente / hoje se prostitui numa publicidade / devida a algum poeta público» («Odeio este tempo detergente», TT, II: 75). A de Ruy Belo foi, na verdade, uma campanha surda contra o comércio poético (cf. III: 52). Neste sentido, explora a distinção entre a poesia e a literatura, entendida esta no sentido negativo verlainiano (cf. III: 53): «Numa época em que o poema facilmente circula, é frequente constatar o recurso generalizado a segmentos de linguagem que foram poéticos na origem, na titularidade do inventor, mas que acabaram por perder de mão em mão a primitiva força» (III: 84). É a poesia a caminho do placebo social ou da farmacologia (cf. FLOR, 1997: 189).
Sugiro que na fraternal incorporação dos outros – dos humilhados e ofendidos – na poesia de Ruy Belo há algo whitmaniano (separa-os, e não apenas, o cristianismo do primeiro e o panteísmo do segundo). Refiro-me à incorporação no proteísmo egótico de Whitman (estou a pensar, claro está, em ‘Song of myself’) das «voices veiled». Este democratismo aproxima-se do «grande ofício» da vida do poeta, como lhe chama Ruy Belo: o de tomar como objecto «o homem pisado o homem batido o homem calcado o homem explorado o homem cansado pelo trabalho o homem frustrado na vida de homem que insatisfeito amargurado que tem no tempo a eternidade», como lemos em «Canto vesperal», de Transporte no Tempo (II: 22). Não só a poesia se destina a quebrar a solidão existencial de «todos» os homens e, por essa razão, a todos se destina (leiam-se os versos «Que por todos se faça a poesia / que quebre a solidão nítido nulo / a solidão das armas dos quarteirões / a solidão do quarto a solidão de kafka / Que a todos se destine a poesia» do «Primeiro poema de Madrid», incluído no mesmo livro, II: 23), como também – e arriscamos, sobretudo – a poesia deve dar voz aos que a não possuem. A incorrigibilidade – a ameaça – da poesia reside no «darmos a palavra aos que não têm voz / pois ao silêncio os têm submetidos / Poemas de palavras não de paz mas de pavor / … sob essa superfície de impassível frialdade / sei que se oculta a voz não da humanidade / palavra do mais dúbio dos significados / mas dos homens que dostoievski viu ofendidos e humilhados / Quente e humana embora na aparência fria» («Primeiro poema de Madrid», TT, II: 24). Note-se a precisão que o eu do poema tem por bem realizar: não a ‘humanidade’ mas os ‘homens’. Entendo-o como um total descrédito na mistificação do humano – e Ruy Belo quis uma poesia completamente desmistificada -, um salto em frente em relação a qualquer discurso demagógico. O compromisso beliano tem porventura na seguinte afirmação a sua melhor síntese: «a poesia deve, entre outras coisas, contribuir para fundar uma sociedade mais justa» (III: 22).
Por último, trata-se de uma poesia que incorpora a Tradição literária ocidental, em geral, e a portuguesa, em particular. Com raízes no romantismo europeu, como apontou Joaquim Manuel Magalhães (cf. 1984: 219) e Fernando Guimarães (cf. 1989: 91-93), a sua obra dialoga com os nomes fortes e os ápices da história da literatura portuguesa (séculos XVI, XIX). Entre esses nomes contam-se Cesário, Nobre, (para só citar alguns) e, evidentemente, Pessoa. A irmandade com Pessoa (assumida pelo próprio poeta) vemo-la, entre outros aspectos, na configuração de uma poesia «cerebral», ou se se quiser, na proposta estética de uma poesia que diríamos mineralizada.
De facto, em Ruy Belo o acto da escrita pressupõe um desinvestimento da expansão sentimental do eu. O subjectivo dá lugar ao objectivo, o sentir ao pensar, a tristeza à sua sábia administração: «vã é a palavra do poeta / se não atenuar a dor da vida» («A margem da alegria», MA, II: 108). Há algo de sacrificial nesta atitude: o «sentir» é sacrificado ou, se se quiser, é «guardado na gaveta». Quando se interrompe o contínuo sentimental, o poema acontece. E o poeta nasce. Ruy Belo narrativizou (encenou) esta questão. Enquanto modo paradigmático da sua escrita, não deixou de o projectar num sintagma da sua história individual. Refiro-me a uma das «Imagens vindas dos dias», concretamente a «Pequena indústria». Num ponto do passado (e porque é mítico não tem cronologia), o poeta nasce quando separa o «fazer versos» que dizem o que «sente» de uma escrita que se impõe mesmo depois de «deixar de sentir»: «passei a fazer um esforço e a escrever os meus próprios versos. Escrevia o que sentia e ainda hoje, muitos anos volvidos, guardo toda essa vasta produção na gaveta. Depois deixei de sentir coisa alguma e continuei a escrever» (HP, I: 181). A escrita passa a ser, então, uma indústria pensada.
Esta micro-narrativa (que tem o sentido mítico do nascimento do Poeta), surge-nos significativamente em Homem de Palavra[s], livro em que a bem moderna reflexão sobre o acto da escrita irrompe com mais determinação. Contudo, este topos metapoético da poesia-enquanto-mineral percorre o itinerário poético beliano considerado no seu conjunto. Em Problema da Habitação, o sujeito do poema «A mão no arado» animava o poeta a uma escrita dessentimentalizada: «Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente» (PH, I: 90). No mesmo conjunto poemático, reconhece ainda o sujeito que «Nada na minha poesia é meu / juro por Deus dizer toda a verdade» («Em cima de meus dias», PH, I: 105). O visto, o lido e o sentido é sacrificado «ao fio da meditação» (HP, I: 184).
Seria, de qualquer forma, em Homem de Palavra[s] que, em jeito de proposição metapoética, se viria a explicitar de modo mais claro esta problemática. Remeto para uns versos de «Esta rua é alegre» em que ao mesmo tempo se parodia o convencionalismo romântico de uma poética do sentimento: «Não costumo por norma dizer o que sinto / mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa / Isto, porém, são coisas que há já algum tempo se sabem / e talvez venham aqui para salvar o momento / para salvar romanticamente este momento» (I: 161). Mais tarde, no longo poema «Pequena história trágico-terrestre», dirá o sujeito que o poema é «feira férias da emoção», que a dor existencial é gramaticalizada, pelo que «nada é menos poético do que a poesia» (I: 194). Ou, de um modo metaforizado: «o poema é coisa insípida inodora / Morta na praia a índole aquática / da emoção que na palavra tem a pedra» (ibidem).
Numa talvez evocação do Pessoa-Caeiro, Ruy Belo afirmou: «Dou palavras um pouco como as árvores dão frutos, embora de uma forma pouco natural e até anti-natural porque, sendo a poesia uma forma de cultura, representa uma alteração, um desvio e até uma violência exercida sobre a natureza» (III: 290). Encaixa, pois, perfeitamente no grupo de poetas que Alberto Caeiro lamentou não saberem florir, perspectivando o trabalho poético como um labor limae: «Pedra a pedra construo o meu poema / e é nele que dos dias me defendo / Não sei de emoções manipulo morfemas» (ibidem). Esta manipulação tem por finalidade o sacrifício do factor pessoal. Em Transporte no Tempo, no poema «Madrid revisited», lemos: «Não sei talvez nestes cinquenta versos eu consiga o meu propósito / dar nessa forma objectiva e até mesmo impessoal em mim habitual» (II: 63). De igual modo, no poema «A margem da alegria» o canto poético é visto como «concisa cantilena / cingida de emoção disciplinada ou dissimulada» (II: 105-106). As «minerais palavras de poeta», como são definidas no «Requiem por Salvador Allende» (cf. TTR, II: 204) decorrem, na verdade, de um postulado estético global. A arte, mais do que imitar a vida, disseca-a: «a arte suga insensível a vida / e a face impassível que lhe é indispensável / só a exibe sobre a emoção que sacrifica» («Discurso branco sobre fundo negro», TTR, II: 210).
Pois bem, podemos resumir assim a virtude de Ruy Belo: a sua obra, que nasce em 61 (data já mítica da recente poesia portuguesa), significa um regresso a uma como que «pureza» poética, afastando-se, por um lado, do conteudismo pragmático e ideológico do neo-realismo hardcore falido, e por outro, dos excessos formalistas das neo-vanguardas. Neste sentido, Ruy Belo dialoga com o clássico – que não é incompatível com o seu romantismo (cf. MAGALHÃES, 1984: 219; GUIMARÃES, 1989: 91). Um poeta que, como bem sabemos, defendia nos seus escritos de teoria poética – reunidos sob o título Na Senda da Poesia – o dulce et utile horaciano. A função da poesia entende-a como «compenetração do ‘dulce’ com o ‘utile’ horacianos» (III: 90; cf. ainda III: 18). Note-se, contudo: penso que devemos entendê-lo um clássico na versão maneirista-barroca (outra das manifestações da história literária na sua poética), pois não deixou de sobrepor o deleite à intenção pragmática da poesia (cf. PIRES, 1996: 19).
A História tem destas ironias (na verdade, as ironias só o são pela História): de uma posição de extravagância – a que voluntariamente se votou ao incluir-se no grupo dos «não alinhados» (cf. III: 25) -, Ruy Belo passa a ocupar o lugar central de a sua poesia ser uma poesia de convergências várias. Vinte anos após a sua morte, é já – se o não era em 1978 – um Clássico com maiúscula (o poeta perdoará este levantar de cabeça da letra). É, a sua, uma poesia exemplar.
3. NEM PALAVRAS NEM COISAS
António Ramos Rosa, num ensaio notável, estabeleceu uma forte linha de leitura da poesia de Ruy Belo: é de sua lavra, na origem, o que chamarei a tese da fissura ontológica. O crítico parte do reconhecimento de que existe uma ruptura entre o eu e o mundo. Estamos, claro está, em pleno regime romântico (e católico, diga-se). Introduz, então, a ideia da ontologia beliana em termos de densidade. Assim, a poesia de Ruy Belo, argumenta, visa re-ligar o sujeito ao mundo. É nos seguintes termos que entende a rememoração da infância: «É sobretudo nas evocações da infância que Ruy Belo logra cristalizar imagens que possuem uma densidade ontológica que resiste à corrosão do tempo. São verdadeiras presenças que se erguem na sua pujante materialidade» (1987: 66). Há, pois, uma consumação eufórica da re-ligação. O mundo perdido é recuperado, ou se se quiser, pela memória o sujeito recupera o ser originário. Dirá ainda, neste sentido, o mesmo crítico: «Há um vigor, que é o vigor da presença, nestas imagens que, assim, atingem a plenitude ontológica. Só em imagens como estas logra o poeta estabelecer uma feliz, densa e profunda relação com as coisas, só através delas pode suturar por momentos a ferida originária que marca tragicamente toda a poesia. É numa fulguração da memória, à qual se alia a percepção originária do real, que as coisas adquirem uma materialidade intensa que as torna presenças vivas de um mundo inicial» (ibidem: 67). Gostaria de destacar os seguintes termos: «materialidade» e «presença», sublinhados por «pujante» e «vigor». O poema, neste sentido, será como uma cornucópia que não dá palavras mas coisas. Esta é, do meu ponto de vista, uma leitura bem eliotiana do fenómeno poético. Para Eliot, recordemos, a poesia saudável apresenta-nos os objectos ou, por outras palavras, nela palavra e objecto identificam-se (cf. ELIOT, 1948: 149). Num sentido muito semelhante, Ezra Pound, como recorda Robert Pinsky (cf. 1976: 4-5), conferia um sentido objectual e fenoménico ao poema.
O texto de António Ramos Rosa é verdadeiramente seminal pois enuncia o que penso ser outra tese forte (que, na verdade, complementa a primeira): vou chamar-lhe a tese da negatividade (apenas) superada pela poesia. O crítico propõe, também, que a fissura se sobrepõe à reconciliação, ou melhor, que domina por completo a poesia de Ruy Belo. Assim, «não se poderia dizer, portanto, que há na poesia de Ruy Belo uma dialéctica da presença e da privação, porque o negativo nunca é superado ou mediatizado a não ser no plano da realização poética» (ibidem: 71). Atente-se nas últimas palavras. De um lado a negatividade imperativa, mas, de outro, a confiança na poesia como possibilidade de a superar, ou, por outras palavras, de suturar a fissura. Na óptica desta segunda tese, a «presença» e a «materialidade» do mundo inicial (termos utilizados na primeira tese) são transferidos para «substância» das palavras ou da poesia: «Ainda assim, as presenças surgem aqui e acolá como elementos de reconciliação, mais virtual do que efectiva, mas de algum modo actualizados poeticamente, encarnados na substância das palavras» (ibidem: 71). Sublinho «virtual», «de algum modo» e «encarnados». Note-se que a fissura continua a ser jogada em termos de «eu» /«mundo» e que a poesia actualiza as presenças, ou, se se quiser, permite a reconciliação (contudo, e já lá iremos, mais «virtual» do que «efectiva»). Tudo se passa como se a poesia estivesse do lado de fora da relação fissurada do «eu» com o «mundo». Uma posição que ocupa ainda que lhe seja atribuída a missão de superação e falhe. Assim, pode o crítico afirmar que «o canto prossegue na positividade da linguagem» (ibidem: 73), ou ainda, «O canto, na sua energia rítmica e na sua música, revela a infinidade e a força disseminativa da palavra que, no seu excesso e na sua veemência apaixonada, se torna vida inaugural, substância do ser» (ibidem: 74).
A insuperabilidade do negativo não é vista, então, como um produto da palavra. O que pretendo, neste pequeno ensaio, é relevar uma série de lugares da poesia de Ruy Belo em que o problema da re-ligação é colocado em termos de linguagem. Dito de outro modo, a poesia de Ruy Belo diz-nos que a negatividade está nas palavras e na poesia. Ao mesmo tempo, pretendo ver sob esta luz a questão da rememoração da infância. Se António Ramos Rosa a deixou «intacta», argumentarei que um conjunto de lugares desta poesia, mais do que recuperar a infância, ou buscar a sua recuperação, controem um sujeito que também na sua rememoração assiste ao fracasso da re-ligação. Ou seja: mais do que falar da infância, Ruy Belo fala do falar – imperfeito – da infância. A ideia, penso, está contida no «virtual» entre parêntese do autor de Incisões Oblíquas. Assim, desenvolverei esta terceira via – que não invalida as outras duas pois todas elas cabem numa poesia como a de Belo, marcada por Proteu – propondo, como alternativa (na verdade um ponto de apoio como aquele que era necessário ao filósofo para levantar o globo) à imagem da densidade ontológica, uma outra: a da focagem. A face com que o sujeito na poesia de Ruy Belo encara a infância pode ser uma face «embaciada»: «Eu curvo ante a infância a face embaciada» (I: 99). E sublinho «pode ser» porque no contínuo da focagem teremos momentos de nitidez e momentos de turvação. Para mim tem a vantagem de dizer um sujeito e uma palavra inextricavelmente unidos como visão de uma cena que, na verdade, é a própria visão. Por outro lado, a imagem rememorada será eufórica quando nítida mas sempre mantida «à distância».
Esta questão implica recordar alguns aspectos do problema do bilinguismo. A ideia do bilinguismo humano está presente desde os primeiros livros de Ruy Belo. A univocidade linguística é privilégio de deuses, não de homens. Recordemos apenas: Deus é perspectivado como a origem da nomeação dos objectos e dos seres. A linguagem de Deus, neste sentido, é uma linguagem unívoca uma vez que se adequa perfeitamente ao mundo. No poema de Problema da Habitação intitulado «Efeitos secundários», o eu poemático diz-nos ser a divindade a «mais redonda boca para os nomes das coisas / para o nome do homem ou o homem do homem?» (I: 106). A boca redonda – e recorde-se aqui a simbólica do círculo que Nuno Júdice reconheceu na poesia de Ruy Belo (cf. JÚDICE, 1981: 16) – é-o para os nomes das coisas e do homem. A linguagem divina – unilingue, diríamos com o poeta -, própria de um mundo super-lunar, não manifesta qualquer fissura entre a coisa e a palavra que a diz. É no contexto desta língua de deuses que devemos enquadrar o carácter funesto da linguagem humana. Nesta linha, diríamos que Deus é um ser supra-sígnico – recorda Umberto Eco que Deus, ao coincidir com a totalidade do universo, é um «animal não semiótico» (cf. ECO, 1984: 6). Note-se: Deus, na poesia de Ruy Belo, não tem palavras mas sim boca. A ter, teria uma palavra apenas: o seu nome (que não seria signo, de qualquer forma).
Ora, é verdade que, por um lado, a boca redonda de Deus se imiscui no dito pelo poeta. Quando o sujeito se diz, e esta questão é fundamentalmente válida nos dois primeiros livros, diz-se como que vocalizando a palavra divina. Lemo-lo no poema «Mors semper prae oculis», precisamente de Aquele Grande Rio Eufrates: «Narro-me letra por letra para ti / e sou a breve palavra que tu deixas / como uma esteira branca no céu azul do tempo» (I: 39). Há como que uma disponibilidade do sujeito para ser receptor, ou veículo, da palavra divina. O sujeito assume o lugar do intermediário (ele é uma espécie de sacerdote) que articula no tempo (na história) a palavra de Deus. Para sermos mais precisos, Deus é, para além de boca, uma voz de que a palavra do poeta é um vestígio.
Contudo, o sujeito é os olhos finitos pelos quais «O senhor olha finitamente a sua obra» (I: 19). A «vibração» daquele como que estado sacerdotal surge quando deparamos com poemas em que o sujeito reconhece a inevitável filtração humana (a sua) dessa palavra divina. Se, por um lado, temos esse sentido ministerial do sujeito poético, tal não significa uma anulação da sua subjectividade. Façamos uma comparação despropositada. O estatuto do santo na narrativa hagiográfica é o de ser imago da divindade. Isso implica a redução – quando não a anulação – desse eu (na verdade um não-sujeito) enquanto vontade, enquanto desejo. O carácter figural é aí total. Ora, o sujeito poético beliano (já em Aquele Grande Rio Eufrates) agencia a inscrição da divindade no poema. O paradoxo (que o não é, na verdade) instala-se: não é a mão de Deus que está por detrás do poema, mas a mão do poeta. Veja-se, justamente, o «Poema quase apostólico», onde temos um poeta sereno – que, como o jogador do pião de Boca Bilingue, activa o movimento de rotação do planeta infantil -, um poeta que «põe o rosto do senhor por trás das suas palavras» (I: 20). O poeta «põe» Deus no poema, ou seja, não é o lugar estático da emergência da divindade. Por outras palavras, Deus é perseguidopelos lábios do poeta (cf. «Vestigia Dei», I: 25), enquanto «rosto decisivo» que se encerra em «todas as palavras com que dissemos os versos» (I: 26), como lemos no poema «Vestigia Dei».
Assim, as palavras do poeta não são apenas as «palavras que deus lhe pôs na boca» («Aquele grande rio Eufrates», AGRE, I: 60). A palavra do poeta é, fatalmente, uma palavra sub-lunar, intrinsecamente imperfeita. Ou bilingue, como viria a dizer. Neste sentido, o sujeito poético assume conscientemente a fractura dela com o mundo. Assim, a boca redonda de Deus que tudo diz perfeitamente, contrasta com a boca do sujeito que produz palavras des-ligadas e que, na verdade, não dizem. Penso ser essa a lição de um verso com que deparamos logo em Aquele Grande Rio Eufrates, o livro de poemas onde a relação vertical do sujeito com a divindade é mais relevante. Para o sujeito, a sua boca (a sua palavra) é o terminus do próprio Deus: «Triste destino o teu: morreres na minha boca» («Aquele grande rio Eufrates», AGRE, I: 67). Na particular cosmogonia deste primeiro livro – em que Deus, muito cristãmente, se revela no mundo -, não poder dizer a divindade é não poder dizer este mundo (sacralizado). O mundo apenas é olhado de perfil, porque mediatizado pela palavra funesta. Em Homem de Palavra[s], onde voltaria a dizer que «mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus» («Corpo de Deus», I: 178), encontramos a seguinte interrogação no poema «Quanto morre um homem»: «Quando eu um dia decisivamente voltar a face / das coisas que só de perfil contemplei / quem procurará nelas as linhas do teu rosto?» (I: 38). Sublinho esta ideia de «coisas» contempladas «de perfil» e o modo interrogativo-dubitativo (exemplar) em que é expressa.
Se Deus é um ser supra-sígnico, o sujeito poético nada mais é do que signos (se quisermos: «Os versos que faço sou-os», I: 34). A consciência por parte do sujeito poético de que dispõe de uma voz própria («Tenho um vocabulário próprio. O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar, rolar umas sobre as outras as palavras», lemos no poema «Não sei nada», HP, I: 180), ou singular, condu-lo a um topos poético que se mantém de certa forma estável ao longo do itinerário poético de Ruy Belo. Refiro-me, muito concretamente, à voluntária submissão dessa voz poética ao que chamarei um princípio de emagrecimento. Se Deus é Verbo (único), a situação humana do sujeito poético implica a multiplicação da palavra em palavras. Pois bem, não deixa de tratar-se de um sujeito poético que procura, num certo sentido, emular (imperfeitamente) a unicidade do verbo divino.
É neste sentido que entendo o princípio de uma poesia de poucas palavras. A racionalidade desta economia vocabular assenta no pressuposto de que o excesso de palavras conduz ao sem sentido («És aquele que no maior número possível de palavras nada disse» («Relatório e contas», PH, I: 116)). Estas reflexões são inauguradas em Homem de Palavra[ s] , publicado em 1969, quando o poeta levava já atrás de si três livros. É então que lhe é possível ler-se a si próprio e opor o passado ao presente poético, concluindo: «Antigamente escrevia poemas compridos / hoje tenho quatro palavras para fazer um poema / São elas: desalento prostração desolação desânimo / E ainda me esquecia de uma: desistência» («Cinco palavras cinco pedras», HP, I: 148). De facto, é possível reduzir o universo poético beliano a uns quantos temas obsidiantes. Um deles – e poderíamos acrescentar a morte, a dúvida, a solidão, entre os mais destacados – é precisamente este da desistência. Repare-se, nos últimos versos que citei, a ironia do «quase esquecimento» deste último vocábulo. E ironia porque, na verdade, o lugar dessa desistência é central na sua poesia. Uma frustração existencial viria a intensificar-se em livros como Transporte no Tempo, Toda a Terra ou Despeço-me da Terra da Alegria.
A exiguidade de palavras proposta como princípio nestes comentários de índole metapoética, contrasta com uma realidade iniludível na poesia de Ruy Belo. A de que, ao contrário de se concentrarem, os seus poemas vão ganhando progressivamente um cada vez mais considerável fôlego discursivo. Se exceptuarmos poemas como «Aquele Grande Rio Eufrates», do primeiro livro, ou «Pequena história trágico-terrestre», de País Possível – são os exemplos mais significativos – verificamos ser essa sobretudo uma realidade a partir de Transporte no Tempo, de 1973 (também o ano da «Pequena história trágico-terrestre»). Esta tendência culmina, no ano seguinte, com «A margem da alegria», poema que é um livro. Contudo, tal não significa o abandono da afirmação, por parte do sujeito poemático, de uma poética mínima. Esta afirmação continua nos livros «crepusculares». É o caso de uns versos do poema «Uma forma de me despedir» de Toda a Terra: «Ora eu que no fundo / apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários / bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras / desde a primeira manhã do mundo / para nomear só duas coisas» (II: 177). Na verdade, Ruy Belo volta a referir-se a um conjunto de palavras-chave que estão no âmago do seu universo poético, ainda que a praxis versificatória signifique a extensão dos poemas.
Ora a questão fundamental, do meu ponto de vista, joga-se nos seguintes termos. Temos um sujeito que, através desse princípio económico, pretende emular a univocidade linguística divina. E, penso, não estará distante desta questão a incorporação, no poema, da palavra bíblica. Um exemplo (talvez um dos mais significativos) poderia ser «Levanta-te e caminha, hesitante palavra», o conhecido primeiro verso de «Ce funeste langage», poema introdutório de Boca Bilingue. Através da apropriação da fórmula bíblica, em certo sentido, temos o sujeito no lugar de uma imitação potencialmente transgressiva. E digo potencialmente porque Ruy Belo em nenhum momento explorou esta apropriação enquanto gesto, diríamos, herético.
Ainda que, isso sim, venha a desinvestir de sentido a própria omnipotência criativa de Deus. Num livro final como Toda a Terra, a divindade (e a questão passa pela perda «biográfica» da fé) é reduzida a um jogo de significantes: «deus é só um nome e só pode criar / se é que o pode um só campo semântico / que deixa dar o nome de divinas a coisas tão terrestres como o mar / para citar apenas um exemplo» (do poema «Ao regressar episodicamente», TTR, II: 250). O criacionismo é abertamente desclassificado (duvida-se da própria capacidade de o seu nome criar campos semânticos), e o próprio mundo – como consequência desta dessacralização – adequa-se mal ao significado do vocábulo divino.
Esta questão é de importância capital uma vez que mostra bem em que termos se está a jogar a relação do sujeito com o mundo (os objectos, as coisas). Não só se desinveste de sentido Deus como as palavras e as coisas. Algo que se manifesta já em Problema da Habitação. Lemos aí, nos «Versos do pobre católico»: «Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar» (I: 112). Este verso é significativo: alia o problema das coisas ao problema da linguagem. O mundo – a sua densidade, ou a sua focagem – depende da mediação da linguagem.
Temos, pois, que a fórmula «Levanta-te e caminha» entra no jogo de palavras que é a poesia. Que em Ruy Belo, recordo-o, não deixa de ser perspectivada como uma techné, um trabalho que, enquanto indústria (ou artesanato, se se quiser), pode oscilar entre o refúgio e o desporto. Nada do sentido mistérico ou mágico de uma palavra divina (a única que pode coincidir com o mundo). Polir o poema é um gesto que permite ocupar o tempo: «todo o tempo se lhe ia / em polir o seu poema / a melhor coisa que fez» («Cólofon ou epitáfio», HP, I: 186). Ainda assim, não deixa de ser um ofício que proporciona segurança ao sujeito: «Aqui é que eu coisa feita de dias única razão / vou polindo o poema sensação de segurança» («Lugar onde», HP, I: 143). E noutro lugar dirá: «regresso então à versificação / e encontro nos papéis o meu segundo mar» («Exercício», HP, I: 163). Contudo, numa sugestão talvez heideggeriana (cf. III: 80), esse trabalho é visto também como um jogo: «O meu desporto é a versificação / e troco o próprio verão por três quatro palavras / dessas a que é alheio o coração» («Encontros e desencontros», DTA, II: 318). Ou, mais explicitamente: «Do jogo é que ninguém me livra / pois caio nele de borco / e palavra por palavra / assim alinho o meu verso» («Os cemitérios tributários», HP, I: 148). Anos mais tarde, ressurgiria esta mesma ideia em Transporte no Tempo, numa proposição que, significativamente, retira qualquer transcendência ao trabalho da escrita: «as aliterações são dos meus pratos favoritos» («Poema de natal», II: 73).
O poema, «pura coisa de palavras», justamente pela sua condição de linguagem leva a marca da negatividade. Ruy Belo opõe, desta forma, a poesia ao poético ou procura o «poema detrás do poema» (TT, II: 59). Assim chegamos, completando estas reflexões metapoéticas, ao topos da vacuidade da palavra poética. Esta questão, do meu ponto de vista, surge num momento final da poesia de Ruy Belo. Remeto, sobretudo, para Toda a Terra, livro verdadeiramente de despedida para o poeta. As palavras, neste momento, deixam de remeter para outro lado, impõem-se como exterioridade pura. Como vampiros, não se reflectem no espelho: «palavras / que nem mesmo conseguirei / ver no espelho onde aliás nada vejo a não ser as gengivas e os dentes» («Ao lavar dos dentes», TTR, II: 170).
Na verdade, há como que uma desistência (palavra-chave, recordemos) na fé colocada – mas nunca de forma absoluta pelo consubstancial bilinguismo – na possibilidade de as palavras revelarem o mundo. Dito de outro modo, tudo se passa «como se porventura escrever fosse mais alguma coisa do que escrever» (ibidem). «Fosse», mas não é. Assim, «as palavras são somente palavras / nem terríveis palavras somente palavras» («Nem sequer não», TTR, II: 201). Será em Despeço-me da Terra da Alegria que teremos, porventura, a mais dramática assunção do esvaziamento da palavra: «Não me demoro ou moro em sítio algum / já nada significam as palavras» («Despeço-me da terra da alegria», DTA, II: 299).
Contudo, já em Aquele Grande Rio Eufrates encontramos a ideia de que o mundo, porque é nomeado, se separa do eu: «Demos outrora um nome a cada coisa / houvemo-las assim por nossas e opusemo-las / dentro de nós à natureza exterior» («Aquele Grande Rio Eufrates», AGRE, I: 61). A separação é, pois, também produto da linguagem humana. As palavras mediatizam a relação com o mundo, que por esse motivo, é inalcançável. Note-se, como medeiam entre o sujeito e a natureza: «palavra de que tu, ó árvore, dispões para vir até mim / do alto da tua inatingível condição» («Quasi flos», PH, I: 73).
A questão emergirá, ainda, no tecido poemático sob a forma de interrogação: «Agora aqui relembro e pergunto: / Qual é a realidade de tudo isto? Afinal onde é que as coisas continuam / e como continuam se é que continuam?» («Através da chuva e da névoa», HP, I: 175-176). Este é uma das linhas que pode assumir a reflexão metapoética sobre a relação do sujeito e a realidade que o rodeia. Podemos, de facto, encontrar uma série de lugares que dizem a rarefacção do mundo. Em Homem de Palavra[s] deparamos com a seguinte imagem: «Qualquer que fosse a paisagem, a mesma paisagem: a terra calcinada, o canto das cigarras, o ar espesso do vapor a provocar a rarefacção das coisas vistas e a dar-lhes um ar de miragem» («A pressão dos mortos», HP, I: 182-183). O mundo adquire a consistência de uma miragem. E note-se: é paisagem, isto é, imagem do real filtrada pelo olhar do sujeito. Voltando a pegar na imagem que propus, é como se estivéssemos agora diante do regime óptico da desfocagem.
Assim, como lemos em Toda a Terra: «Sempre entre mim e ao que chamam coisas há-de haver palavras / e dirão que há-de haver não só algum sentido para as coisas / mas um sentido seja ele qual for para a merda da vida» («Um quarto as coisas a cabeça», TT, II: 68-69). O real deixa de ter, nestas formulações, um outro lado e, deste modo, o que fica é a consciência de que se não pode devolver esse sentido íntimo do mundo: «Como dizer-lhe que tudo é esta terra / que outra terra que houver é desta terra / que há gestos inúteis nas melhores das mãos / que nada tem no fundo algum sentido / que é escusado que não há saída / que se qualquer sentido tem a nossa vida / é só no fundo ver passar o tempo / pensar alguma coisa olhar as folhas / enquanto o noite súbita não desce? Como dizer-te que não há coisas por detrás das coisas?» («Meditação anciã», TTR, II: 222).
O mundo tem, então, a par da sua rarefacção exterior, um existência subjectiva: «passeio no jardim a cena passa-se no espírito», concluirá em «Enganos e desencontros» (DTA, II: 311). Uma cena que, porque pensada, leva a marca da negatividade: «pensar é o que não nos leva às coisas» («A fonte da arte», TTR, II: 297). E é uma realidade metamorfoseada: «As coisas em que penso não existirão muitas vezes talvez a não ser / no meu pensamento ou então o meu pensamento modifica-as / dá-lhes possivelmente uma forma diferente da que têm ou terão na realidade» («Ao lavar dos dentes», TTR, II: 169).
Outro modo que assume a reflexão sobre a impossibilidade de superar a negatividade é a de que palavras e coisas, na sua intrínseca vacuidade, oprimem o sujeito. Em Toda a Terra encontramos dois poemas em que se formula esta questão: «As coisas que me cercam assassinam-me / rodeiam-me possuem-me dominam-me / e só hão-de parar depois de me haverem esmagado» («Ao regressar episodicamente…», TTR, II: 251); ou, ainda, «Sinto-me devorado pelas coisas / há coisas sim há as dispersas coisas» («A sombra o sol», TTR, II: 269). Por seu turno, também as palavras são destrutivas, «palavras que nomeiam que destroem / palavras matadoras mais do que punhais» («Encontro de Garcilaso…», TTR, II: 244). E o terrível das palavras é o serem-no apenas, como dissera em «Nem sequer não»: «aqui onde as palavras nunca serviram nem os sentimentos / nem sequer as ideias nem sequer as coisas / aqui onde as palavras são somente palavras / nem terríveis palavras somente palavras» («Nem sequer não», TTR, II: 201).
Gostaria, num remate que se perfila como sugestão a exigir um futuro desenvolvimento, recordar aqui a revisão da poesia romântica (um exemplo: a de Wordsworth, um dos nomes que têm sido apontados como referentes fundamentais para a poesia de Ruy Belo) levada a cabo por Paul De Man. Ao contrário dos new critics, De Man, na esteira, entre outros, de Heidegger (cf. «The Origin of the Work of Art», 1971), parte da separação absoluta do sujeito e o objecto e não vê a poesia romântica como um espaço de «reconciliação» mas de «conhecimento negativo». O autor de Blindness and Insight colocaria a questão também em relação à poesia mallarmeana: «El poeta sabe que no puede vivir en la plenitud de una unidad natural del ser; también sabe que su lenguaje no tiene el poder de recuperar esa unidad, ya que es de por sí la causa principal de la separación. Pero se sobrepone a la desesperación de este descubrimiento objectivando su conocimiento negativo y convirtiéndolo en una forma cuyo contenido es ese conocimiento mismo. El poeta espera así salvaguardar la posibilidad futura de su obra, sustituyendo la inútil búsqueda de la unidad por la contemplación de su próprio fracaso» (apud WATERS, 1996: 54).
Proporia, então, como alternativa a essa poética (e ontologia, se bem que foi aqui um questão marginalmente tratada) da presença – tal como a enunciou António Ramos Rosa nas duas teses que considerei – uma poética da negação. Na verdade, uma representação não mediada, recorda ainda De Man num conhecido texto sobre Nietzsche, é uma aporia ou, melhor ainda, um absurdo lógico (cf. MAN, 1990: 119). No consubstancial bilinguismo humano e nas reflexões de índole metapoética que fui relevando, deparamos com uma poesia que, nunca ocultado o seu carácter de linguagem, assume a sua própria negatividade. A poesia, dirá Heidegger, liberta a linguagem para que seja apenas linguagem (cf. HEIDEGGER, 1971: 74), e a obra de arte não resolve o conflito inerente ao princípio da negação: a obra de arte torna-o visível.
Ruy Belo, ao seu modo, reconheceu a inexistência de poesia fora do texto: «A existência da poesia fora das palavras dificilmente a concebem as modernas teorias poéticas» (III: 75). É a partir desta assunção que, segundo penso, devemos entender a vocação do gesto poético beliano em direcção a como que uma poesia after word, a busca do poema para além do poema, ou a atracção de um silêncio que em si é mais poesia que a própria poesia. Assim, há uma plenitude poética que é a de «cantar / como quem tivesse nenhum pensamento» (I: 34), e há um sujeito que quer «começ[a] a cantar / como quem do poema se esqueceu» (I: 82), ou, ainda, «só agora findas as palavras eu pressinto / pela primeira vez haver talvez algum poema / por detrás do poema pura coisa de palavras» (II: 59). O eu lírico sabe de si que «dizer e ser são para mim a mesma coisa / sou o rei do inexorável reino das palavras / palavras que nomeiam que destroem / palavras matadoras mais do que punhais» (II: 244). Ora, sobre este modo homicida das palavras direi mais adiante no ponto «O regresso como crime (Billy the Kid)».
4. UT PICTURA (FOTOGRAFIA / FOTOGRAMA) POESIS
Este ponto entendo-o como um parêntese (ou didascália). Vou partir do facto, para que já foi chamada a atenção (cf. MAGALHÃES, 1981: 337), de a poesia de Ruy Belo estabelecer um diálogo com diferentes objectos culturais. Sejam eles: poemas e poetas, arquitectos, peças escultóricas, pinturas, fotografias ou cinema. É sobre estes últimos modos de expressão artística que vou tecer algumas considerações. De resto, a relação intertextual com a fotografia e o cinema foi assumida pelo próprio poeta. Homem de Palavra[ s] será o livro de Ruy Belo onde mais se nota (e onde o poeta nota) a presença do cinema. Confessa no prefácio à sua segunda edição (1978): «A influência do cinema é notória neste livro, mais que em qualquer outro meu. Mesmo poemas realistas como Aos homens do cais e Os estivadores foram escritos sobre diapositivos, com o campo do olhar já claramente delimitado. Mas Humphrey Bogart e principalmente No way out, Vício de Matar e Esplendor na Relva são poemas onde o cinema me ensinou a ver» (I: 137). Ruy Belo insistiria nesta lição cinematográfica do olhar em Na Senda da Poesia (cf. III: 92).
Não me interessará tanto, neste momento, a investigação de como certos recursos cinematográficos podem ser aplicados ao poema. É o próprio Ruy Belo a reconhecê-lo quando, na explicação preliminar à segunda edição de Homem de Palavra[ s] , remete para o uso do suspense (I: 134; cf., ainda, III: 279). De facto, num poema como «Vila do Conde», temos um trabalho poemático algo hitchcockiano. No âmago do suspense está a ansiedade do espectador que sabe o que vai acontecer à personagem (que, por seu turno, o ignora). Suspense é mostrar ao espectador, por exemplo, uma bomba debaixo de uma mesa, cuja existência é desconhecida pela personagem em cena. A bomba, no caso de Ruy Belo, será a sugestão de ‘Conde’ no par ‘onde’ e ‘esconde’ repetidos ao longo do poema.
Num outro texto, Ruy Belo referiria a possibilidade de investigar o papel da montagem na poesia contemporânea. A sugestão, sabemo-lo, não é nova uma vez que é bem conhecido o papel que ela desempenha em poetas modernistas como Eliot e Pound. Gostaria, por outro lado, de deixar uma sugestão. A da utilização no poema do close-up. Considerem-se os seguintes versos de «A margem da alegria»: «ou apenas falar de uns olhos onde havia a água da doçura / e à volta um rosto paciente e sereníssimo / bastante para alguns primeiros planos de um filme a preto e branco» (II: 90). Talvez se possa ver aqui indiciada a utilização desse outro expediente cinematográfico. É notória, ao longo do itinerário poético beliano, a fixação da visão do sujeito poético no «rosto» ou «face» e, sobretudo, nos «olhos» ou no «olhar».
Ruy Belo utiliza o cinema como Texto citável. Como faz com a Tradição literária, ainda que em muito menor escala, o cinema é depósito de referências que se incorporam ao poema como incrustrações culturais. Um bom exemplo temo-lo quando remete para O Último Ano em Marienbad de Alain Resnais: «Ainda este ano talvez em marienbad / eu vi mulheres curtidas pelos lutos / Mal de morte é o meu / em plena posição de pé às três da tarde / em meio do movimento do rossio / sentado à tarde no cinema em dias de semana» («Nada consta», I: 170). Neste caso concreto, a referência ao filme, como que em epígrafe, transporta o sujeito a um momento e a um lugar concretos. Noutro poema, um outro filme funciona como speculum que devolve ao sujeito da imagem da realidade: «Eu a miséria da minha terra / contemplei-a ao natural / enquanto vi no cinema / como se vive em beavar canal» («No way out», I: 149). Atente-se, desde já, na dialéctica real/ficção que aqui se pressupõe. Algo semelhante ocorre no poema «Um dia uma vida»: «tu / morreste muito antes de haver visto no cinema como / se morre em vida mais do que em veneza» («A sombra o sol», II: 285). Neste exemplo, a imagem cinematográfica da morte (sugerida por Morte em Veneza de Lucchino Visconti), constrasta com a mortalidade real do sujeito. Aponto apenas alguns exemplos, sem ânimo para ser exaustivo. Casablanca (cf. II: 160), Chaplin (cf. II: 185), Fellini (cf. II: 206), são outras das referências ao mundo cinematográfico que podemos encontrar.
Insisto no sentido parentético deste ponto. O que pretendo é considerar a eventual contiguidade entre um poema e uma fotografia, um fotograma ou sequência de fotogramas, como um correlato do preceito horaciano ut pictura poesis. Uma hipótese que começarei por legitimar (apenas em parte) com as palavras de Belo. É, como sabemos, em «Os fingimentos da poesia» (I: 183-184) que o poeta, remetendo para a lição de um Da Vinci, aproxima o trabalho poético do trabalho pictórico (cf., ainda, III: 74). Este fecundo trânsito entre o visual e o verbal fez as delícias dos poetas barrocos, uma questão excelentemente estudada por Ana Hatherly (cf. 1997: 75-87). Há também, em Ruy Belo, um culto pela imagem visual ao escrever sobre diapositivos e sobre personae cinematográficas, sobre romanas pintadas e sobre estátuas. E, sobretudo o que me vai interessar aqui, se para os nossos barrocos pintar metaforiza o acto da escrita (cf. ibidem: 80), a imagem fotográfica, o cinema (o fotograma, a imagem cinematográfica) ensinaram o poeta a ver, volto a sublinhar.
Tomo como ponto de partida os seguintes versos de «Pequena história trágico-terrestre», do livro País Possível: «Nem só de mar é feita a minha praia / a vaga vaga que vem vindo enquanto viva / e que fica na página na forma de palavra / palavra fotográfica de coisas» («Pequena história trágico-terrestre», I: 194). Repare-se, pois, como afirmativamente a palavra poética é considerada uma fotografia. A natureza (a «vaga», que aqui a substitui em sinédoque) fica no texto poemático, como se de uma fotografia (ou, arrisco, de um fotograma) se tratasse. As coisas (res), como numa câmara-escura ou na emulsão fotográfica, são reveladas nas palavras (verba). Assim, creio residir aqui o interesse de Ruy Belo pela fotografia (e, consequentemente também, pelo cinema): a fotografia fixa o instante das coisas, isto é o momento único em que a sua unidade não é estilhaçada pela passagem do tempo. Leia-se o poema «Elogio de Maria Teresa», de Transporte no Tempo: «São retratos diferentes de quem foste um breve instante / e nele floriste e apenas não murchaste / por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias» (II: 62). O breve instante fixado na fotografia não «murcha». Neste sentido, a fotografia não é aqui entendida como uma técnica de reprodução sem aura (cf. BENJAMIN, 1992: 92), mas sim como o resgate das coisas e dos seres da imersão no tempo alterizante. Considere-se, ainda neste sentido, «A rapariga de Cambridge», incluído em Homem de Palavra[s], outro poema sobre um suporte fotográfico. O sujeito poético, com Shakespeare como pano de fundo, diz-nos que trocaria o quotidiano (o seu reino) pelo momento de uma fotografia: «O meu reino pela rapariga de cambridge / Se eu a conhecesse mas no momento da fotografia» (I: 157).
Este poder de fixar o momento não deixará de encerrar uma analogia com o discurso pictórico: «sei algumas coisas por exemplo o / impressionismo fixação do instante na pintura» (do poema «Pequena história trágico-terrestre», I: 194). Um poema em que a mesma ideia é explorada, temo-lo em Transporte no Tempo. Uma figura feminina, Helena, regressa do passado por intermédio de uma fotografia: «helena deste outono madrileno só porque a fotografia / lhe permite sair do labirinto desse verão onde a deixei» («Solene saudação a uma fotografia», II: 52). Veja-se como a rememoração é suscitada pela (e como) fotografia. Um outro exemplo do que digo temo-lo no poema «O girassol de rio de onor», onde se diz: «nós que não temos e nunca tivemos / coisa pequena como uns palmos de país / pomos tudo o que somos nestes seres que passamos / e nos fixamos só em certas fotografias que tiramos / Era aquele julgo juro o girassol de há anos / mas nós que como sombras aqui passamos / porventura seremos os que éramos há anos?» (II: 57). Fixamo-nos apenas em fotografias.
Arriscaria mesmo mais, dizendo que os conteúdos recolhidos pela memória afloram na consciência do sujeito como fotografias, isto é, como fulgurações de instantes. O instante é imobilizado, como um insecto em âmbar. E a palavra, deste modo, visa conservar algo da realidade das coisas. O instante congelado fixa a sua realidade mais do que a sua instalação no tempo. O tempo, que é essencialmente alterizante, é agente da sua constante destruição. Por outras palavras, se no tempo as coisas – e os seres – exibem a sua mortalidade, na palavra fotográfica contrapõem-se a esta lógica mortal.
O cinema imortaliza olhares e, de igual modo, é possível ao sujeito cruzar os olhos com uma romana do século segundo. Esta é a lição de um poema como «Humphrey Bogart»: «Era a cara que tinha e foi-se embora / mas nunca foi visto como agora […] Ganhámo-lo ao perdê-lo. Não se perde um olhar / não é verdade meu irmão humphrey bogart» (HP, I: 147). Por outro lado, o olhar da romana fixado por uma pintura, de um modo diríamos modernista, aproxima séculos distantes: «Moldaram-te esse rosto abriram-te esse olhar / decerto expressamente para que uns dezoito séculos mais tarde / te pudesse encontrar quem mais que tu morreu / mas te ama ó mulher perdidamente» («Declaração de amor a uma romana do século segundo», TT, II: 34).
Noutro poema, a romana (o seu olhar transportado no tempo) chama-se Deanie Loomis. Em «Esplendor na relva», citado pelo próprio Belo como um dos poemas que é um bom exemplo de como o cinema o ensinou a ver, a irrealidade (a ficcionalidade) da personagem feminina é contraposta às mulheres (reais) por entre as quais caminha: «Eu sei que deanie loomis não existe / mas entre as mais essa mulher caminha / e a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste» (HP, I: 173). Loomis, fixada nos fotogramas de uma película, é animada por um efeito de realidade além da própria imaginação.
Contudo, se tanto fotogramas como fotografias conservam instantes a-temporais (fora da racionalidade do tempo), também elas são mementa mori. A imagem cinematográfica, apesar da sua ilusão de movimento, é também uma marca da mortalidade dos seres. É verdade que, como antes vimos, Ruy Belo não concede excessiva importância ao poema «Na morte de Marilyn». Contudo, penso ver nele uma afirmação do cariz fúnebre das imagens fílmicas e, por extensão, das imagens fotográficas. Diz-nos o sujeito que Marilyn «estava tão sozinha que pensou que a não amavam / que todos afinal a utilizavam / que viam por trás dela a mais comum imagem dela / a cara o corpo de mulher que urge adjectivar / mesmo que seja bela o adjectivo a empregar / que em vez de ver um todo se decida dissecar / analisar partir multiplicar em partes» (II: 53). A analogia entre o discurso fílmico e o discurso poético está uma vez mais presente. A imagem fílmica é uma imagem dissecada – uma imagem de morte – que faz explodir o todo (o ser vivo) em favor da multiplicação de partes (os fotogramas) mortas. Ora, o mesmo acontece com a palavra poética (o adjectivo «bela»). As palavras constroem uma «comum imagem», ou se se quiser, uma imagem dissecada da mulher real (um supor: Norma Jean).
Assim, se as imagens são conservação, são igualmente monumentos fúnebres. O sujeito, que antes reconhecia no poema «O girassol de rio de onor» a possibilidade de fixação nas fotografias, num poema como «Um dia uma vida» conclui: «eu agora nem mesmo me revejo já / nessas fotografias nessas outras tantas mortes» (II, 232). Na verdade, a definição possível da sua visão cinematográfica (ou fotográfica) poderia ser um verso do poema «Em cima de meus dias»: «com um olho vasado transpareço o meu passado» (I, 105). Uma proposição que assentaria bem tanto como definição da câmara fotográfica ou de filmar: ambas, como um ciclope, levam a marca da mortalidade.
A palavra poética, como a fotografia, tem um poder relativo sobre o tempo. Por um lado, possibilita ao sujeito dizer «Eu tinha nas mãos então meia dúzia de nomes / quando às vezes os pronunciava o tempo rodava e parava» («Uma árvore na minha vida», TTR, II: 185). O sujeito poético, instalado numa temporalidade que diríamos heraclitiana (o tempo roda inexoravelmente e é, consequentemente, alteridade), ao mesmo tempo, como deixam entrever os versos de Toda a Terra antes transcritos, contrapõe a palavra poética a essa dinâmica alterizante. Assim, a palavra pronunciada – dita – faz: (i) parar o tempo, (ii) rodar o tempo. Considero fulcral esta noção de um tempo simultaneamente dinâmico e estático. Uma noção que tem na rotação do pião, do poema «O jogador do pião» de Boca Bilingue, a sua imagem mais eloquente. E uma noção de tempo que tem a sua versão, diríamos, mecânica, no estatismo e dinamismo presentes no suporte fílmico.
A palavra é o «modo humano de morder o tempo» («Miséria e grandeza», AGRE, I, 45), um modo de negá-lo (no poema «Requiem por Salvador Allende» de Toda a Terra lemos os seguintes versos: «Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água / sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo / o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia / talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado / ombro a ombro com gente analfabeta», II: 203), que é o mesmo que dizer que o podemos apreender ou deter. O ofício poético tem essa função (ou, se quisermos, este poder). Remeto, sem querer abusar da citação, a um passo de «Um dia uma vida», outra vez de Toda a Terra: «Vindo da agricultura e da cultura por / folhas de terra e páginas de livros / ordenho umas palavras leves e leitosas / e com elas procuro apreender deter o tempo / obrigá-lo a parar e impedi-lo de passar» («Um dia uma vida», TTR, II: 234). Deter o tempo não significa aqui a sua estase absoluta. Significa, sim, que ao poeta é possível, captando-o pela palavra, tentar contrapor-se ao seus efeitos mortíferos. Assim, se o tempo é essencialmente morte, a palavra poética, o poema, podem resgatar instantes. É este instante que a palavra condensa. Contudo, a analogia com o registo fotográfico ou cinematográfico implica a ideia de que a palavra é, de igual modo, congelação (isto é, morte) de algo morto. Também a palavra é simultaneamente fixação e marca fúnebre. O carácter funesto ou bilingue da linguagem assenta nesta ambivalência. Ou, se quisermos, temos tornada visível a luta, ou o conflito, pela (impossível) eternização do instante (cf. III: 160).
5. O REGRESSO COMO CRIME (BILLY THE KID)
O «canto próprio» do poeta, «não dicionarizável» (cf. o poema «Em louvor do vento», TTR, II: 143) é entendido pelo sujeito poético de diferentes poemas dos livros de Ruy Belo como uma canto vesperal, irrompendo, em diversos momentos, imagens da natureza – o poeta vem tanto da «cultura» como da «agricultura», líamos mais acima – para dizer essa palavra poética intrinsecamente outonal. O verso que melhor condensa esta ideia encontramo-lo logo em Aquele Grande Rio Eufrates, no poema «Segundo poema de outono»: «Haverá outra poesia que não / a que cai nas tristes / folhas de outono?» (I: 52). No mesmo livro, o eu do poema «Advento do anjo» proporá ainda outra vez a homologação do trabalho poético à queda de folhas no outono: «Percamos palavras como folhas / perdem no outono as árvores» (AGRE, I: 48).
Recorde-se, uma vez mais, como Alberto Caeiro lamentava que os poetas não soubessem ‘florir’ (ele próprio um poeta que não floriu). Na versão de Ruy Belo, contudo, o ‘florir’ é substituído pela ‘queda’ das folhas. A imagem vegetal nos dois poetas sugere diferentes analogias com o trabalho poético: o ‘florir’ enquadra-se bem na (pretendida) visão virginal do mundo proposta por Caeiro, enquanto que em Ruy Belo a queda outonal das folhas aponta para o sentido elegíaco da sua poesia. Osvaldo Manuel Silvestre, no estudo introdutório a uma recente edição de Boca Bilingue, chamou a atenção para este carácter elegíaco (intrinsecamentete elegíaco) da poesia de Ruy Belo. Diz-nos que «O poema, ‘símil da lábil criança’ e aspiração sempre nostálgica à ‘mais redonda boca para os nomes das coisas’, é por definição elegia, monumento fúnebre, lápide funerária de si mesmo. Linguagem funesta, porque irredutivelmente bilingue» (1997: 20).
O motivo da caducidade das folhas recorreria em Problema da Habitação: «A poesia é uma loucura de palavras / espectáculo de folhas o poema» («Prince Caspian», PH, I: 82). Também na «Canção do lavrador» temos a mesma temática, conjugada aí com a atenção do sujeito às condições duras do trabalho do campo. Do mesmo modo que o lavrador extrai a sua vida da terra, de que depende e com a qual se confunde, também o poeta deve ser os seus versos. A irmandade, neste sentido, de ambos os ofícios determina o convite: «Poeta não escrevas lavra» (I: 35). A figura do lavrador não deixa de sugerir, ela própria, o sentido elegíaco do trabalho poético. Ao mesmo tempo introduz a ideia de uma trabalho inevitável ao poeta. Canto e vida, como lavra e vida, fundem-se de forma inextricável. Ao poeta, o «outono punitivo» não autoriza «desistir de cantar» enquanto vive (cf. o poema «Espaço para a canção», TT, II, 19). Um canto que nos é dado neste mesmo livro crepuscular, Toda a Terra, como o canto do urogalo, que «canta solitário e triste» (II: 70).
Será também neste sentido que Ruy Belo se considerou a si próprio um «profissional de mortes» (III: 38). Esta afirmação, passa, evidentemente, pelo desejo de consumação do regresso ao lugar matricial da terra. Contudo, entendo-o, também, como um modo de dizer o poder homicida da palavra poética. Se, na poesia de Ruy Belo, todo o «caminho é de regresso» (a transumância do sujeito poético é regressiva), esse regresso acontece como se o sujeito voltasse «ao local do seu crime» (I: 103). Aqui está o sentido deste ponto como glosa. Se a poesia é fúnebre, é elegíaca, é-o, do meu ponto de vista, por ser marca de um crime. Sigo, neste sentido, a linha de leitura já enunciada no ponto deste ensaio intitulado «Nem palavras nem coisas». A negatividade da palavra pode assumir a forma de um homicídio. A palavra – funesta, bilingue – é ela própria agente da fractura do sujeito, que não entendo fora desta linguagem, pelo que o homicídio é, de certo forma, involuntário (ou, se se quiser: é absolutamente involuntário e, ao mesmo tempo, absolutamente voluntário).
Eis a lápide (ou lapidarmente): «Ao escrever mato-me e mato» (III: 290). Neste sentido, aproximo o sujeito poético beliano do que considero ser uma sua transposição heterónoma: a figura de Billy the Kid, do poema intitulado «Vício de Matar» (HP, I: 150-151). Billy, um ser em constante demanda – em permanente itinerância – de um lugar de refúgio. Proponho que se tenha em conta o desdobramento da figura de Billy: por um lado, ele é aquele que «nunca soubera fugir», aquele que persegue a morte dos «outros», aquele que não sabe que «bastava um gesto», aquele que nunca «pergunta para onde há-de ir»; por outro lado, é também o que «conhece agora o seu destino», o que «leva um tiro e então já sabe / para onde sempre quisera ir». Distingue-os um diferente saber: a perseguição da morte dos outros é, na verdade, um desvio em relação ao verdadeiro programa de consumação da sua demanda de refúgio: «Persegue a morte na pessoa dos outros / quando era nele que a devia afinal perseguir». Por outro lado, «Mata inimigos e mata amigos». Inimigo de si próprio e dos que lhe estão próximos (os amigos ou «a gente de quem ele gosta»). O crime, neste sentido, é um crime vicioso.
É sob esta luz que interpreto o motivo que chamarei, com alguma liberdade, ruptura das origens genealógicas. Um motivo que, como um refrão, percorre (ainda que com intensidade diversa) os diferentes livros de Ruy Belo. Uma imagem de Aquele Grande Rio Eufrates, imagem que ecoa motivos barrocos, servir-nos-á de epígrafe: «sou dos edifícios da cidade / um dos que hão-de ruir amanhã / Tombaram-nos primeiro os avós / e chega já a vez dos nossos pais / Quando faltar um choupo no caminho da infância que vai dar ao rio / receberemos no rosto a morte» («Mors semper prae oculis», I: 39). Como podemos constatar, o eu do poema coloca-se numa linha existencial (um cenário do passado) a que falhou já a origem genealógica.
Diante deste verso que nos diz que a morte será recebida quando faltar «um choupo no caminho da infância», tenhamos presente o ensaio, a que já fiz referência, de Eduardo do Prado Coelho (cf. 1984), sobre o «caminho de regresso à escola» como cena primitiva da poesia de Ruy Belo. Estou perfeitamente de acordo com a interpretação que dela faz o crítico. Contudo, como já tive oportunidade de afirmar, mesmo sendo todo o caminho caminho de regresso, nem esse caminho nem esse regresso são absolutamente triunfais. E toda a leitura de Eduardo do Prado Coelho vai no sentido de densificar (volto ao termo utilizado por António Ramos Rosa) o planeta infantil beliano. Ora o que acontece, pelo contrário, na poesia do autor de Toda a Terra é mais complexo (ou mais completo, se se quiser). A morte é, para o sujeito poético, o seu «planeta desde tenra idade» (I: 180). E não esqueçamos a cena do encontro do sujeito de «Canto Vesperal», do livro Transporte no Tempo, com a criança «inconcebível» e «incomensurável»: «Como te chamas tu que creio conhecer-te? E aquela criança então senhora da infância e do direito de dispor dela como dispõe da vida um suicida respondeu-me: Nada é o meu nome» (II: 20). Não será difícil imaginar este encontro entre o sujeito e um Billy the Kid (que é como quem diz: consigo próprio).
O planeta infantil é, também, um planeta ameaçado. Pela morte, claro está. Como vimos, a própria recuperação «fotográfica» do passado infantil pressupõe distância ontológica ou separação do sujeito. A par da afirmação peremptória de uma infância idílica (perdida), temos também a problematização de ela o ser ou não (idílica, entenda-se). É neste ponto que creio poder encaixar o motivo do corte com os alicerces genealógicos do sujeito. Se, como se nos diz no poema «cdc/dcd», «já a futura morte transparece / no pequenino rosto da criança» (I: 156), um outro modo de dizer esta presença é esse motivo. Por outras palavras, pretendo ver nele como que o «choupo» que falha no cenário infantil. E noto: o cenário é, na verdade, a visão do sujeito, uma visão que vitima o rememorado: «Renasce neste largo a minha infância…a consciência que provisoriamente sinto de voltar alguns anos atrás / a sensação que sei de reflectir sobre esse tempo / de ser um espectador…só essa consciência e sensação me fazem suspeitar / de que passou o tempo» (de «O jogo do chinquilho», II: 39). É a condição de espectador que lhe permite ver o fim. A morte desse mundo, o choupo que lhe falta, chega-lhe no momento da visão vitimadora (cf., ainda, o poema «Génese e desenvolvimento do poema», II: 36).
Em O Problema da Habitação, o motivo da ruptura genealógica revestirá três modos. Por um lado, hipotetiza-se aí as relações familiares: «talvez ainda tenha algumas tias / Talvez eu reconquiste ainda a minha tão perdida aldeia» («Imaginatio locorum», I: 78). Neste sentido, o que temos é um outro modo de dizer a dúvida que acomete o sujeito, noutros lugares da obra, quanto à realidade do passado. Em segundo lugar, o motivo aflora sob a forma de uma troca (ou uma falsificação) das origens familiares: «trocaram-nos os pais e mesmo os mais longínquos membros da família / caíram-nos ao lado as folhas e as vestes e os braços e as casas uma a uma» («Prince Caspian», I: 81). Por último, temos a negação aberta da figura paterna: «A ninguém nesta vida propriamente chamei pai» («Tempora nubila», I: 88).
Continuando esta negação da origem, em Boca Bilingue o motivo ressurge com ainda maior veemência. Constatamo-lo num poema como «José o homem dos sonhos», em que essa figura, que alteriza o sujeito, é um «homem sem pai e sem mãe» (I: 173). Também regressa o modo dubitativo que encontrávamos em Aquele Grande Rio Eufrates. O sujeito do poema «Certas formas de nojo» define-se da seguinte maneira: «O meu modo de ser / é todo este não ser possível perguntar e responder / Sou uma enorme dúvida estendida da cabeça aos pés / nem sei já se nasci ou se morri» (I: 127). Chamo a atenção, no exemplo vertente, para o desconhecimento do nascimento como forma de dizer a ignorância de uma qualquer origem.
Contudo, o verso que, porventura, coloca a questão nas suas implicações mais profundas pertence a «A morte da água». A referência, aí, à configuração genealógica por excelência é explícita: a árvore genealógica. Que é negada e, nesta negação, significa o apagamento da identidade do eu : «Acabou-se qualquer possível árvore genealógica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato» (I: 182). A anonímia do sujeito é, pois, correlativa da impossibilidade do passado. O eu, «longe de famílias e tensões, / alheio a elementos de curriculum, esquecido / até de prazos horas carreira promissora ou simples biografia / o homem vai buscar às árvores de pé pedidas pelo sol / a única possível genealogia» («Mercado dos Santos, em Nisa», I: 101), ganha a consciência de que se perde de si próprio. Dito de outro modo, aprofunda-se a cisão entre o ser do passado e o ser do presente. Falha, pois, a bio-grafia (a auto-bio-grafia) como coluna vertebral da identidade. A experiência do tempo é recobrada como uma subjectividade dispersa «em bocados, vítimas do vento / ficando aqui, ali, nalgum lugar que amamos» («Efeitos secundários», I: 107).
O motivo da ruptura genealógica dá a vez, a partir de Transporte no Tempo, à ideia de um passado irrecuperável. O passado, lugar da infância, tanto é considerado inacessível ao sujeito, como abertamente negado. Num dos poemas centrais de Transporte no Tempo, «Odeio este tempo detergente», a distância intransponível entre o sujeito e a infância é dada pelo conflito entre um tempo detergente (presente) e o tempo da sombra do relógio da aldeia: «Tive um passado agora inacessível um passado / tão alto como a torre do relógio da aldeia / que pontual pontua a passagem do tempo / um tempo não ainda um tempo detergente um tempo / afinal só visível no sensível alastrar da sombra / ao longo desse pátio» (II: 76). Como vestígio bio-lógico, o intervalo que medeia entre o passado e o presente é reduzido a uma pegada evanescente. Impõe-se, agora, a auto-reflexão que tematiza o carácter subjectivo da infância, isto é, da sua existência apenas como algo pensado. No longo poema «A margem da alegria», que dá o título ao livro de poemas que publicou em 1974, reconhece o sujeito ser a «a infância passada no presente pensada / até ficar nada da nossa pegada» (II: 124). Nega-se o passado, como lemos no poema «Em louvor do vento»: «não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo agora mesmo de nascer» (II: 145).
Mas, sobretudo, ao sujeito emudece a voz (própria) que o poderia narrativizar. É em Toda a Terra que esta incapacidade de contar a sua história se declara mais abertamente. No poema «Como quem escreve com sentimentos», o sujeito circunscreve-se a um presente fechado que não permite o trânsito em relação ao que (ou àquele que) o sujeito foi: «Estou sujeito ao tempo sou este momento / perguntam-me quem fui e permaneço mudo» (II: 178). Este emudecimento, correlativo do categórico «não tenho passado» («Em louvor do vento», II: 145), surge neste livro também aliado ao motivo do esquecimento (cf. SILVESTRE, 1997: 15). Esquecer a história pessoal é esquecer o nome que a diz: «Esqueço o nome esqueço a minha história», lemos no poema «A sombra o sol» (II: 272). O mesmo topos se revela, ainda, no motivo da fotografia que perde a virtude especular de devolver ao sujeito uma imagem. Veja-se, neste sentido, o seguinte verso de «Um dia uma vida»: «eu agora nem me revejo já / nessas fotografias nessas outras tantas mortes» (II: 232). As fotografias perderam a aura, ou se se quiser, enquanto suportes da fixação do eu deixam de devolver uma imagem identificadora.
Uma outra imagem que diz esta interrupção da história do sujeito é a de um Tempo que escreve os dias do eu lírico «sobre a areia». A areia é um suporte frágil desta história, um suporte que a não permite erigir em monumento historiográfico: «O tempo escreve dia a dia sobre a areia / palavra por palavra a pura história / de quanto por passar inecessário fui / e nem dessa beneditina história ficará memória» («Discurso branco sobre fundo negro», II: 209). A comparação com o dicurso historiográfico é assaz interessante. Aqui tem evidentemente um sentido subjectivo: o de ser impossível cristalizar em discurso a história individual do sujeito. No poema «Requiem por Salvador Allende» temos claramente enunciada a cisão entre uma história individual (interrompível) e uma instância transcendente que – chamemos-lhe História – continua a avançar: «Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós / que um homem se detenha quando a história caminha / em frente sempre altiva e serena / como mulher de muito tempo sabedora» (II: 207). A historiografia individual, não-beneditina, é reduzida, não sem ironia, a um conjunto de documentos que, na verdade, falsificam a identidade do eu: «Nenhum dos muitos meus dos mais autenticados documentos / terá dito talvez quem tenha sido / Aliás não fui muito até se fui quem fui» («Meditação anciã», II: 214).
O motivo da ruptura das origens genéticas encontra-se, pois, relacionado com o tema da identidade do sujeito. Simultaneamente, permite-nos corroborar a infância como um planeta a que faltam leis de gravitação: «Nenhum cordão umbilical nos prende por instantes a nenhum umbigo» («Vila Real», I: 103). Dito de outro modo, o motivo diz bem a falha mortal do planeta infantil ou, se se quiser ainda, reduz-lhe a densidade ontológica. A ruptura deve ser entendida, por último, como um gesto homicida (involuntário). O poeta, o homem das palavras que rememoram, no seu bilinguismo intrínseco, é um homicida justamente porque o seu uso da linguagem está marcado pela negatividade. No poema «A sombra o sol», incluído em Toda a Terra, lemos precisamente: «Esqueço o nome esqueço a minha história» (II: 272), questão de algum modo aflorada já em Aquele Grande Rio Eufrates: «Que te acontece que mais não fizeste anos [?]» («Missa de aniversário», I: 42). Ou, ainda, num verso com algum eco de Alberto Caeiro: «Nascemos e morremos e nada acontece» («Aquele grande rio Eufrates», I: 61). Não há uma gnoseologia que permita ao sujeito poético religar-se ao planeta infantil, nem palavras que suportem essa gnoseologia. Aqui encaixa o motivo do esquecimento enquanto gesto de interrupção que diz a fractura com o passado, motivo tão ou mais importante na poética beliana do que a própria rememoração. O próprio Ruy Belo responderia nos seguintes termos à pergunta «Tem boa memória?»: «Péssima. Aliás, mais do que a vida, mais do que o sono, do que eu gosto é do esquecimento» (III: 37). E não será o esquecimento (que nega a memória triunfal) um modo de faltar um choupo no «caminho da infância»?
BIBLIOGRAFIA:
ADORNO, T.,
(1991) Teoria Estética, Lisboa, Edições 70.
BELO, Ruy,
(1984) Obra Poética, org. Joaquim Manuel Magalhães, 3 vols., 2ª ed., Lisboa, Editorial Presença.
BENJAMIN, Walter,
(1992) Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água.
COELHO, Eduardo Prado,
(1984) «Ruy Belo – A Caminho da Escola», in A Mecânica dos Fluídos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 153-160.
CRUZ, Gastão,
(1981) «Ruy Belo, Poeta da Morte, do Real e da Dúvida», Jornal de Letras, Ano I, nº2, 24 de Novembro a 7 de Dezembro, pp. 14-15.
DIOGO, Américo António Lindeza,
(1990) Herberto Helder: Texto, Metáfora, Metáfora do Texto, Coimbra, Almedina.
(1997) Modernismo, Readymade. Notícias das Trincheiras, Braga, Cadernos do Povo/Ensaio.
GOULART, Maria Rosa,
- Artes Poéticas, Braga-Coimbra, Angelus Novus.
ECO, Umberto,
(1984), O Conceito de Texto, S. Paulo,
ELIOT, T. S.,
- The Sacred Wood, London, Methuen.
FLOR, Fernando R. de la,
(1997) Biblioclasmo. Por una práctica crítica de la lecto-escritura, Salamanca, JCL.
GUIMARÃES, Fernando,
(1983) «Acerca da Poesia de Ruy Belo: um Espaço de Sentido», in Colóquio/Letras, nº 73, Maio, pp. 50-55.
(1989) «Um Espaço Significativo na Poesia de Ruy Belo», in A Poesia Contemporânea Portuguesa e o Fim da Modernidade, Lisboa, Caminho, pp. 91-97.
HATHERLY, Ana,
(1997) O Ladrão Cristalino. Aspectos do Imaginário Barroco, Lisboa, Cosmos.
HEIDEGGER, Martin,
(1971) Poetry, Language, Thought, New York, Harper & Row.
JÚDICE, Nuno,
(1981) «Ruy Belo: da Linha ao Círculo», Jornal de Letras, Ano I, nº2, 24 de Novembro a 7 de Dezembro, p. 16.
(1984) «Percursos de Perse sobre uma Dinâmica do Espaço», in Maria Alzira Seixo, coord., Poéticas do Século XX, Lisboa, Livros Horizonte, pp. 31-37.
MAGALHÃES, Joaquim Manuel,
(1978) «A Poesia de Ruy Belo», in Colóquio/Letras, nº 46, pp. 46-51.
(1981) «Ruy Belo», in Os Dois Crepúsculos. Sobre Poesia Portuguesa Actual e Outras Crónicas, Lisboa, A Regra do Jogo, pp. 145-163.
(1984) «Posfácio ao 1º Volume», in Ruy Belo, Obra Poética, vol. 1, 2ª ed., Lisboa, Editorial Presença, pp. 217-236.
MAN, Paul de,
(1990) Alegorias de la lectura, Madrid, Lumen.
(1996) Escritos Críticos, Madrid, Visor.
MERQUIOR, José Guilherme,
(1979) «O significado do pós-modernismo», in Colóquio/Letras, Lisboa, pp. 6-12.
PEREIRA, Miguel Serras,
- «Recordação e Utopia», Jornal de Letras, Ano I, nº2, 24 de Novembro a 7 de Dezembro, pp. 16-17.
PINSKY, Robert,
- The Situation of Poetry, Princeton, Princeton University Press.
PIRES, Maria Lucília Gonçalves,
(1996) Xadrez de Palavras. Estudos de Literatura Barroca, Lisboa, Cosmos.
ROSA, António Ramos,
(1987) «Ruy Bello ou a Incerta Identidade», in Incisões Oblíquas. Estudos Sobre Poesia Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Caminho, pp. 65-74.
SENA, Jorge de,
(1977) Dialécticas Teóricas da Literatura, Lisboa, Edições 70.
SILVESTRE, Osvaldo Manuel,
(1997) «Introdução» in Ruy Belo, Boca Bilingue, Lisboa, Editorial Presença, pp. 7-20.
WATERS, Lindsay,
(1996) «Paul de Man: vida y obra», in Paul de Man, Escritos Críticos, Madrid, Visor, pp. 11-81.