Em Portugal, sob o Estado Novo, falar de “intelectuais” foi quase sempre falar da oposição. Em 1966, em conversa com Franco Nogueira (ministro dos negócios estrangeiros), o presidente do conselho Oliveira Salazar queixava-se de que “teve sempre grande dificuldade em encontrar colaboradores, e que os intelectuais lhe fugiram sempre”. Em 1972, o escritor Eduardo Lourenço confirmava a amargura salazarista: “o intelectual mais típico entre nós tem sido o da oposição”. Com efeito, a gente de letras nunca parou de cultivar a lenda do seu anti-salazarismo. Em 11 de Maio de 1975, discursando perante o I Congresso dos Escritores Portugueses, o primeiro ministro Vasco Gonçalves congratulou-se com o facto de que o “fascismo nunca contou com os intelectuais portugueses”. Ao mesmo tempo, porém, Gonçalves lamentou que, tendo-se os intelectuais habituado a escrever de uma maneira muito “sofisticada para poder passar na censura”, os seus textos “ficavam só ao alcance de outros que eram já, digamos, os vossos companheiros”. Era essa a questão que perturbava o currículo cívico do intelectual. Supondo que os intelectuais portugueses foram anti-salazaristas, quão eficaz foi o seu anti-salazarismo?
1. Ideia de Intelectual. A expressão “intelectuais” designou os escritores, os artistas e em geral os diplomados pelas universidades que, na primeira metade do século XX, procuraram influenciar o governo dos estados fundando-se na fama ou prestígio supostamente atingidos através de actividade literária, artística ou científica. A intervenção pública do romancista Émile Zola e de outros autores durante a Questão Dreyfus em França (1898) é geralmente citada como marcando o “nascimento dos intelectuais” na Europa Ocidental. Mas para além do modelo do clerc francês – geralmente um escritor célebre investido no papel de profeta laico -, existiu ainda outro tipo de intelectual, o da intelligentsiarussa no século XIX: uma massa de diplomados sem saída profissional, efeito perverso da expansão escolar num país pobre. Os estadistas conservadores sempre viram nos intelectuais um elemento perturbador, devido à sua tendência para adoptar causas radicais. De facto, nas décadas de 1920 e 1930, os movimentos fascistas e comunistas souberam explorar os intelectuais na sua propaganda contra a “sociedade burguesa” e o “capitalismo”. Livros, filmes e quadros foram então um instrumentos de luta política. Intelectuais passaram a ser todos os escritores, artistas e cientistas pagos, promovidos e cortejados por governos e partidos políticos como forma de captar ou influenciar a opinião pública.
2. Os Intelectuais em Portugal. O enfraquecimento da igreja e da aristocracia titular e a importância dos debates parlamentares e jornalísticos durante a monarquia constitucional (1834-1910) permitiram que oradores e escritores – como Alexandre Herculano ou José Estêvão – ocupassem os primeiros lugares da meritocracia liberal. Mas foram os autores da chamada Geração de 1870 – tais como J.P. Oliveira Martins, Teófilo Braga ou Guerra Junqueiro – quem estabeleceram o paradigma do intelectual português. Na maior parte dos casos, tratava-se de um escritor, geralmente identificado com a esquerda radical, que escrevia para os jornais criticando o carácter oligárquico e egoísta da política liberal e exaltando a necessidade de mobilizar a nação. No entanto, a maioria dos intelectuais pertenceu sempre – pelas suas origens, educação e meios de vida – às classes respeitáveis, cuja principal sustentação estava no serviço do estado. Assim, quase todos foram “bacharéis” (diplomados em direito) e empregados do estado. Só depois da década de 1890, o número de estudantes nos liceus e escolas superiores aumentou ao ponto de muitos temerem o advento de um “proletariado intelectual” como na Rússia, isto é, de uma classe letrada demasiado numerosa para poder ser absorvida pelos serviços do estado e por isso supostamente vocacionada para a frustração e a rebeldia. Não por acaso, os líderes do Partido Republicano Português foram frequentemente identificados como “intelectuais”. A hegemonia da esquerda entre os intelectuais só se quebrou durante a República Democrática (1910-1926), quando, sob inspiração francesa, apareceu uma direita intelectual, defendendo a monarquia e o catolicismo. O Integralismo Lusitano (1915), cuja principal figura foi o ensaísta António Sardinha (1888-1923), constituíu a mais notória dessas tendências anti-situacionistas, que atraíram sobretudo a juventude universitária. No entanto, a República continuou a dispôr dos seus campeões intelectuais, como os literatos ligados à Renascença Portuguesa (1911) e à revista Seara Nova (1921). Alguns deles, como Leonardo Coimbra, António Sérgio ou Ezequiel de Campos chegaram mesmo a ministros. Nas primeiras décadas do século XX, a vida intelectual continuou a ser solta e informal, centrada em tertúlias de café ou em redacções de jornais e revistas, sem a disciplina que as universidades e as grandes academias impunham em França e na Alemanha. No entanto, já se notava a tendência entre os letrados para procurar empregos nos liceus e universidades, instituições que se expandiram nesta época.
3. A Direcção da Inteligência. Em 1934, o Presidente do Conselho Salazar definiu o Estado Novo como o governo da “inteligência”, um regime em que a direcção do estado era “quase exclusivo do professorado superior” (discurso de 28.1.1934). O Estado Novo realizava assim o modelo de governo idealizado pela oposição monárquica francesa sob a Terceira República (1871-1940), o da “ditadura de professores”. O Secretariado Nacional de Propaganda (1933) reflectiu em Portugal o sonho dos intelectuais de todas as tendências na década de 1930: a criação de uma nova cultura popular, que fosse a base da mobilização das massas dentro do estado. O Estado Novo instaurou um sistema de mecenato às letras e artes, com vários organismos oficiais a conceder bolsas e subsídios e a organizar congressos e exposições. Inicialmente, o salazarismo começou por beneficiar da voga do autoritarismo de direita nos meios universitários. Entre os famosos “Tenentes de Maio”, os mais determinados defensores da Ditadura durante os vários contra-golpes militares de 1927-1931, havia muita gente saída das universidades ou em contacto com os grupos de jovens literatos influenciados pelo Integralismo Lusitano. No entanto, os intelectuais do regime não eram os jovens fascistas, mas os antigos liberais conservadores, levados a aderir ao autoritarismo salazarista por zelo anti-comunista ou por simples oportunismo. Assim, as grandes iniciativas culturais do Estado Novo foram presididas por gente como Júlio Dantas, presidente da Academia das Ciências de Lisboa, líder da embaixada cultural ao Brasil (1941) e delegado português na Comissão de Cooperação Intelectual da Sociedade das Nações (1934), ou Augusto de Castro, director do Diário de Notícias e comissário-geral da Exposição do Mundo Português (1940). Dantas e Castro correspondiam ao perfil dos recrutas da União Nacional na década de 1930, gente de meia idade, respeitável, pouco doutrinária. Em Junho de 1935, quando António Ferro, o responsável pelo SNP, trouxe a Portugal uma “embaixada cultural” de escritores europeus, preferiu escolher velhos conservadores, “independentes” e sobretudo católicos (Gabriela Mistral, François Mauriac, Maurice Maeterlinck, Jacques Maritain). António Ferro negou sempre a existência de critérios sectários na atribuição de subsídios e prémios. Em termos de artes plásticas, o SNP acolheu nas suas exposições a maior parte dos pintores e escultores portugueses. Declinando a opção academista da Rússia Soviética e da Alemanha Nazi, Ferro gabava-se de que o salão anual de Arte Moderna do SNP albergava “exclusivamente a facção mais ousada, mais irreverente, mais inconformista da arte portuguesa”, para escândalo de todos aqueles que temiam a “suposta bolchevização das formas e das cores”. Mas em literatura, a inteligência do regime não rompeu os limites seguros de um quintal monárquico-católico, dito “nacionalista”. Em 1943, Ferro era obrigado a reconhecer que podia citar “meia dúzia de nomes de escritores novos, de orientação discutível mas de inegável talento que, por desdenhosa atitude olímpica ou falsa posição ideológica, se revelaram, se impuseram sem nunca terem concorrido aos nossos prémios ou até a quaisquer outros”. Em 1944, era forçado a desmentir a opinião corrente de que “os nossos autênticos valores se têm mostrado alheados, indiferentes aos prémios do SPN”. Por volta de 1948, os 12 prémios literários – para teatro, novelas, contos, ensaios, história, etc – não apresentavam um cadastro de sucesso. 17 dos 111 prémios não tinham sido atribuídos. O pior registo era o do prémio de novela, que em 5 das 9 ocasiões não encontrara um vencedor. Os outros 92 prémios haviam laureado 76 autores, alguns dos quais ganharam o prémio três vezes, como o romancista Joaquim Paço de Arcos.
Em 1946, a cerimónia de entrega de prémios foi suspensa, no rescaldo da campanha eleitoral de Outubro e Novembro de 1945, ocasião em que o Movimento de Unidade Democrática conseguiu bater o SPN na batalha pela “inteligência”. A 16 de Outubro de 1945, 29 professores da Universidade de Coimbra decidiam apoiar publicamente a oposição. A 20 de Outubro, o MUD publicava uma lista de 100 escritores alinhados pelo programa de democratização. Eram apenas 10 % dos cerca de 1000 autores recenseados no Anuário dos Escritores de 1941. Mas entre eles estavam autores célebres, como Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro, jornalistas famosos, como Norberto Lopes e Artur Portela, e alguns dos mais influentes mestres-pensadores da década de 1930, como António Sérgio e José Régio. Apareciam ainda os professores que iriam dominar o ensino universitário da literatura nas décadas seguintes: Hernâni Cidade, Vitorino Nemésio e Jacinto do Prado Coelho. Ao nível dos mais novos, a lista de apoiantes do MUD lê-se como uma espécie de “Quem vai ser Quem na Literatura Portuguesa”: Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço, Virgílio Ferreira, Fernando Namora, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, etc. Havia mesmo um premiado do SPN, Olavo de Eça Leal. A 10 de Novembro, o Diário de Lisboa publicava entrevistas com dois escritores, Alves Redol e Francisco Costa. Redol, publicamente conhecido como militante comunista, não falou de literatura. Em vez disso, citou muitas estatísticas para provar que o Estado Novo deixara o povo na miséria. Costa, um romancista católico que acabara de ganhar um prémio do SNP (1944), admitia que a maior parte dos escritores portugueses estava contra o regime e culpava o próprio Estado Novo pela total politização da literatura e da arte. Em Dezembro de 1945, perante a maré cheia da oposição, Salazar notou, em carta a Marcello Caetano, que além dos velhos da República, “gente nova” e “alguns intelectuais”, se viam “os antigos bolseiros do Instituto de Alta Cultura”. Porque é que o Estado Novo, apesar dos seus recursos, não conseguiu estabelecer a sua ditadura da inteligência? E porque é que o “intelectual” apareceu cada vez mais identificado com a oposição ao salazarismo?
4. As Oposições Intelectuais.
Em princípio, não era confortável estar contra o regime. O Estado Novo colocara as publicações escritas, os espectáculos teatrais e outros meios de comunicação sob a alçada da administração através, sobretudo, da instituição da censura prévia. Em 1937, o escritor José Marinho, recém-saído da prisão, lamentava-se numa carta a José Régio: “É muito difícil viver em Portugal, ou noutro país nas circunstâncias presentes, sem ter de ceder de alguma maneira, aqui ou ali. Se se vai para os colégios, tem de se fazer uma papeleta declarando que se está integrado etc. No jornalismo, há o contacto directo ou indirecto com a Censura, instáveis hipocrisias e concessões. No comércio, aparece o sindicato.” À primeira vista, tudo isto devia ter inibido opções anti-salazaristas por quem ambicionava uma carreira nas letras e artes. No entanto, qualquer lista dos escritores mais conhecidos de 1926 a 1974 pode soar como uma chamada de nomes da oposição ao salazarismo: à esquerda, António Sérgio, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Régio, Jorge de Sena; à direita, Tomás de Figueiredo, Afonso Lopes Vieira, Hipólito Raposo, etc. Isto não significa apenas que os mais destacados escritores se juntaram à oposição ao regime, mas que essa oposição, apesar da sua impotência política, conseguiu impôr os seus critérios de distinção intelectual. Não por acaso, a História da Literatura Portuguesa mais divulgada nas décadas de 1960 e 1970 foi escrita por dois militantes do Partido Comunista Português, António José Saraiva e Óscar Lopes (1955, com seis edições até 1969). Em 1960, Jorge de Sena descrevia a literatura portuguesa como “uma frente popular” que “agrupa quase todo o mundo na exploração comercial do anti-salazarismo”. A “aparência de oposição” era de rigor entre a gente de letras. O “intelectual” era, quase fatalmente, um escritor da oposição, com ficha na polícia e problemas com a censura. Exercia uma profissão liberal ou trabalhava em colégios particulares, jornais e editoras. No entanto, também os havia empregados nos liceus, universidades e outros serviços do estado, como Vieira de Almeida, José Régio, Jorge de Sena (até à sua saída para o Brasil), David Mourão-Ferreira, etc. Durante as campanhas eleitorais, aparecia nas listas e congressos da oposição. Nos intervalos, assinava protestos e petições por isto e aquilo.
A oposição intelectual era possível, em primeiro lugar, porque o Estado Novo nunca chegou à arregimentação cultural cerrada da União Soviética da década de 1930. Em 30 de Outubro de 1935, o escritor Fernando Pessoa anunciava a um amigo que não publicaria mais nada em Portugal porque depreendia de um discurso de Salazar, no dia 21 de Fevereiro, que a Censura ia deixar a “regra restrictiva da Censura, não se pode dizer isto ou aquilo, pela regra soviética do Poder, tem que se dizer aquilo ou isto”. Mas ao contrário do que temia Pessoa, os escritores portugueses nunca se viram obrigados a compôr poemas ao equilíbrio orçamental ou quadros alegóricos do corporativismo. Nunca os escritores, músicos e artistas estiveram obrigados a sindicalizar-se, nem foram regularmente sujeitos a exames de conformismo ideológico como na União Soviética. “A acção espiritual transformada em serviço público, tal como aconteceu na Rússia, é a morte lenta mas inevitável da Arte e da Literatura”, explicou António Ferro em 1937. Durante grande parte da década de 1930, o regime conviveu com uma imprensa em que as tendências colaboracionista e resistente se equilibravam. Em 1933, sete anos depois de instaurada a ditadura militar, fontes oficiais calculavam que de 251 jornais de província, apenas 40 % eram favoráveis ao regime, 25 % eram neutrais e 32 % eram claramente hostis. Nessa época, continuava a haver jornais que se afirmavam “liberais”, “republicanos”, “democratas” e “socialistas”. A impossibilidade de criticar o regime directamente era reciprocada por uma espécie de contra-censura: por exemplo, o Diário Liberal, publicado em Lisboa entre 1932 e 1934, nunca mencionou o nome de Salazar nas suas colunas. Depois de meados da década de 1930, as publicações opostas ao regime conheceram uma época má e o seu número diminuíu. Provavelmente, este declínio reflectiu o aumento da pressão oficial durante a guerra civil de Espanha (1936-1939). Por exemplo, os jornais hostis viram-se atingidos pela privação de anúncios oficiais, que eram uma das bases da imprensa regional. Mas a perda de ânimo da oposição, numa época de sucessivas derrotas da esquerda, também deve ter contribuído para o retraímento da imprensa anti-salazarista. Em Outubro de 1945, de 525 periódicos, apenas 4 mantinham uma linha editorial abertamente hostil ao regime e 5 potencialmente hostil. Mas não havia mais apoio directo do que em 1932. Apenas 66 periódicos (12,5 %) alinhavam pelo Estado Novo sistematicamente. 187 defendiam-no ocasionalmente. No entanto, a maioria – 263 publicações (50 %) – mantinha-se neutral. De facto, na grande imprensa de Lisboa e Porto predominaram sempre os “independentes”, apoiando o governo casuisticamente. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo não pôde impedir a invasão do país pelas máquinas de propaganda dos países beligerantes e acabou por perder o controle sobre a circulação de informação. Segundo os serviços secretos britânicos, a emissão em português da BBC tornara-se, por volta de 1944, a principal fonte de notícias para as classes médias. A vitória dos Aliados em 1945 e as decorrentes hesitações do governo provocaram um súbito renascimento da oposição. Assim, entre Outubro e Dezembro de 1945, o número de periódicos abertamente hostis ao regime saltou de 9 para 50 – voltando-se a uma situação quase semelhante à do princípio da década de 1930 (números em A Política de Informação no Regime Fascista Lisboa: Comissão do Livro Negro, 1980).
Os salazaristas sempre argumentaram com a liberdade de que gozavam os intelectuais da oposição, livres de frequentar a má-língua dos cafés do Chiado, de publicar livros e artigos e de se desentranharem em abaixo-assinados. Estar na oposição não era estar desamparado. A partir sobretudo da década de 1940, um circuito cultural paralelo permitiu a escritores e artistas fazer carreira sem dependerem dos organismos oficiais. Entre 1946 e 1956, as Exposições Gerais de Artes Plásticas rivalizaram com o oficial certame do Secretariado Nacional da Informação (novo título do SNP). Em 1947, os escritores do MUD fundaram a secção portuguesa do PEN Club. Em 1956, aparecia a Sociedade Portuguesa de Escritores, sucessivamente presidida pelos oposicionistas Aquilino Ribeiro e Jaime Cortesão. A SPE reuniu 600 sócios e lançou os seus próprios prémios literários, subsidiados pela Fundação Calouste Gulbenkian. Criada em 1956 e dirigida pelo advogado José Azeredo Perdigão, subscritor das listas do MUD em 1945, a Fundação Gulbenkian comportou-se como uma espécie de ministério da cultura paralelo, proporcionando a artistas plásticos, músicos e académicos uma alternativa aos comprometedores subsídios oficiais. Na década de 1960, bolsas de instituições estrangeiras, como as do americano William Fullbright, também compensaram a discriminação interna. Assim, ser um “intelectual” da oposição não era, para um escritor ou pintor, um acto de suicídio público. Pelo contrário, podia ser uma forma de garantir a publicação em determinadas editoras ou de ser recomendado por certos jornais.
A oposição dos intelectuais expressava, em primeiro lugar, a tradicional heterogeneidade de opiniões entre as classes educadas. O cepticismo em relação à autoridade era, para a élite instruída, um sinal do seu estatuto social. Os governantes podiam assustar a simples burguesia com o fantasma da revolução e satisfazer o povo com caridade. Mas a gente instruída e informada não se deixava engodar. Estar contra ou mais discretamente (sobretudo quando eram empregados do estado) desconfiar do que lhe diziam de cima, eram formas de afirmarem o seu lugar na hierarquia social. Já tinha sido assim durante a monarquia constitucional e durante a república. As classes instruídas em Portugal eram classes politizadas, onde as simpatias ideológicas e os partidarismos passavam de pai para filho. Havia famílias republicanas, liberais, católicas, monárquicas. O conformismo ideológico em Portugal só teria sido possível através da destruição destas classes instruídas, num extermínio à maneira estalinista – algo que o Estado Novo nunca, obviamente, considerou. Por outro lado, a instrução estava fundada em referências que, sobretudo no caso da literatura, tinham um sentido político mais ou menos óbvio. Os grandes escritores do século XIX, que continuavam a ser estudados e ensinados nos liceus, tinham sido liberais ou radicais. Estátuas e nomes de rua lembravam, para quem tinha instrução, o liberalismo e a república. Durante o Estado Novo, o número de pessoas diplomadas por liceus e universidades subiu. A frequência dos liceus, por exemplo, sextuplicou entre 1930 e 1960, crescendo de 18,500 para 112,000 alunos. No entanto, a explosão escolar até à década de 1960 não foi tão dramática que afectasse o valor das credenciais académicas. Num país analfabeto, a instrução garantia uma certa preeminência social e os diplomados tendiam a comportar-se como uma ordem nobiliárquica. A maior parte usava títulos, como o de Doutor, decoração académica que se vulgarizou entre políticos e literatos durante a República, precisamente quando acabou o uso oficial de títulos de nobreza. Era gente que se sentia importante e relutante em adoptar a atitude conformada do “povo”. O censo de 1940, classificava 59.897 pessoas nas “profissões de carácter predominantemente intelectual”. Representavam 1 % da população activa. 80 % eram homens. O estado empregava 37 %. Em 1950, esta categoria incluía, por ordem de importância, gestores e chefes de serviços de empresas privadas (5.665) e da administração pública (4.056), médicos (5.697), oficiais do exército (4.032), padres católicos (3.992), engenheiros (3.891), professores do ensino secundário (2.467) e advogados (1.582). A literatura e as artes faziam parte das actividades e consumos que definiam esta élite instruída. Em 1950, segundo o recenseamento da população, havia 260 escritores, 255 “pintores de arte”, 324 escultores e 72 realizadores e técnicos cinematográficos. No entanto, o Anuário dos Escritores de 1941 registava mais de 1.000 nomes. A importância das letras e artes mede-se melhor pelo Quem é Alguém. Dicionário Biográfico das Personalidades em Destaque do Nosso Tempo, publicado pela Portugália Editora em 1947 (Lisboa). Uma sondagem pelos 260 nomes da letra A revela que 36 indivíduos eram identificados como “escritores” (14 %). Mas além desses, mais 106 notabilidades tinham obra publicada. Assim, 55 % das “personalidades em destaque” em Portugal escreviam e publicavam, ocasional ou regularmente, trabalhos de erudição ou peças literárias. A maior parte eram médicos, professores, funcionários públicos, advogados, padres e militares. Muitos colaboravam regularmente para jornais de província e revistas de especialidade. É curioso que sejam poucos os lavradores, empresários ou aristocratas que, enquanto tais, tivessem entrado no Quem É Alguém. Em Portugal, eram as profissões liberais e a actividade literária que davam destaque social. Durante o Estado Novo, a repressão de outras formas de intervenção investiu a actividade literária de uma certa importância política. Determinados consumos culturais eram, para muita gente, a única manifestação de oposição. A literatura tornou-se o instrumento para um debate político que não tinha outro meio de se revelar. Só assim se percebe que o futuro secretário-geral do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal, se tivesse estreado publicamente em discussões sobre estética com José Régio no fim da década de 1930. O Movimento Comunista Internacional sempre viu nos escritores a “artilharia de longo alcance, que abre caminho à infantaria”, como lhes chamou Nikita Krutchev. A mais importante moda literária associada com o comunismo era o chamado “Neo-Realismo”, a adaptação portuguesa da literatura militante dos comunistas americanos e brasileiros. De facto, o neo-realismo foi mais do que isso. Representou a entrada na literatura de uma pequena burguesia provinciana, que vinha dos meios autodidactas das associações de cultura e recreio, como se vê pelo “grupo neo-realista de Vila Franca de Xira”, que produziu o romancista Alves Redol e o dirigente comunista António Dias Lourenço. Representou ainda a radicalização dos filhos dos notáveis republicanos a estudar nos liceus e escolas superiores e activos no circuito de clubes e jornais académicos. Queimadas as “gerações operárias” e suspenso o Avante (1939), o Partido Comunista ressurgiu baseado nos círculos culturais formados por revistas como O Sol Nascente (Porto, 1937-1940) e o Diabo(Lisboa, 1934-1940), cujos colaboradores prolongavam a sua acção por jornais de província e clubes desportivos e recreativos. A Biblioteca Cosmos (1941), orientada por Bento de Jesus Caraça, foi outra iniciativa dos meios comunistas. O sentido deste investimento cultural percebe-se melhor quando se nota que a leitura de determinados livros (Jorge Amado, Alves Redol) constituía a forma corrente de recrutamento comunista. Depois de 1945, o PCP chegou a dispôr de um “sector intelectual” organizado em Lisboa, Coimbra e Porto, sobretudo com estudantes e gente das profissões liberais. Estes eram os agentes do partido nas frentes da oposição, como o MUNAF e o MUD. No vocabulário comunista, “intelectual” tinha um sentido ambíguo: era um eufemismo para os militantes e simpatizantes de origem “burguesa”, e por isso mesmo era também uma forma de insulto. Inevitavelmente, os derrotados nas lutas internas do partido foram sempre acusados de serem “intelectuais” e “pequeno burgueses”.
Os contemporâneos nunca esqueceram o papel da literatura nas décadas de 1940 e 1950. O número de livros publicados por ano em Portugal subiu de 1000 em 1930 para 3000 em 1940. Em 1950, caíu para 2000, mas em 1960 ascendera já a 6500. O número de editoras cresceu de 231 em 1946 para 1290 em 1974. Em 1941, a edição de luxo de A Volta ao Mundo de Ferreira de Castro vendeu 25.000 exemplares. Do seu romance A Selva foram consumidos 2.000 exemplares por ano em média entre 1930 e 1960. Todos os jornais tinham secções literárias, as livrarias organizavam sessões de autógrafos e havia tertúlias literárias em cafés. A visibilidade política dos escritores era grande. O primeiro congresso da oposição republicana em Aveiro, em 1957, foi convocado e dirigido pelo médico e crítico literário Mário Sacramento. Em 1958, foram António Sérgio, Jaime Cortesão e Vieira de Almeida quem deram créditos de oposição a Humberto Delgado. Houve casos célebres. Por exemplo, o processo judicial ao “grande escritor” [segundo a própria Polícia Judiciária] Aquilino Ribeiro, em 1959. Aquilino era acusado de injúrias à magistratura “a coberto da ficção literária” no romance Quando os Lobos Uivam (que esgotou quase 10.000 exemplares num ano). O caso provocou a solidariedade dos intelectuais franceses, encabeçados por François Mauriac, no Le Monde. Em Portugal, 300 literatos apoiaram a candidatura de Aquilino ao Prémio Nobel, o que fez o Ministério Público insinuar que o acusado queria “disfarçar-se de Pasternak”, referência ao dissidente russo que ganhara o Prémio Nobel da Literatura em 1958 (ver A. Caldeira e D. Andriga, Em Defesa de Aquilino Ribeiro, Lisboa: 1994).
Mas a oposição intelectual não era um fenómeno de esquerda. Salazar, que recebeu os maiores elogios da direita reaccionária francesa, nunca pôde contar com a devoção dos ideólogos do reaccionarismo doméstico. Os velhos Integralistas – como Hipólito Raposo ou Alberto Monsaraz – depressa passaram à oposição. Os Integralistas mais novos, como Francisco Rolão Preto, desafiaram o salazarismo e preferiram emular os movimentos totalitários da Itália e Alemanha. O Nacional Sindicalismo (1932-1934) revelou como a deriva fascista podia incomodar o regime. O movimento foi fundado fundado por estudantes das Faculdades de Direito e de Letras da Universidade de Lisboa e tinha inquietantes ramificações entre os oficiais do exército e o professorado da Universidade de Coimbra. Entre os Nacional-Sindicalistas estavam os escritores António Pedro e Luís Forjaz Trigueiros, o professor universitário Luís Cabral de Moncada e os jornalistas Dutra Faria, Barradas de Oliveira e Manuel Múrias. Depois da proibição do Nacional Sindicalismo, alguns dos seus seguidores, como António Pedro, passaram à oposição anti-salazarista. Outros, como Dutra Faria, Barradas de Oliveira e Múrias, entraram nos órgãos de propaganda do regime, geralmente em posições subalternas. Permaneceram sempre mais conformados do que entusiasmados. De 1942 a 1944, Marcello Caetano, ex-Integralista e comissário nacional da Mocidade Portuguesa, seringou Salazar com a alienação da “juventude universitária”, por falta de fervor ideológico no regime. Mas a necessidade de equilibrar facções impediu qualquer orientação doutrinária de acordo com as modas totalitárias europeias da década de 1930. Os católicos nunca pactuaram com o “totalitarismo” fascista, a que opuseram o o respeito pela dignidade da “pessoa humana”. Continuando a velha política eclesiástica de reconciliação iniciada durante a República Democrática, o Cardeal Cerejeira mostrou sempre mais apetência por cativar a esquerda do que por satisfazer a direita, que sempre viu nele um republicano inimigo das boas famílias monárquicas. Na década de 1950, os “católicos progressistas” encarnaram as dúvidas da igreja em relação à intransigência salazarista. Assim, enquanto para a extrema-esquerda, o regime era um bloco homogéneo e sólido de fascistas, jesuítas e monárquicos, servidos pela polícia e pela censura, a direita radical acusava o regime de, pelo contrário, favorecer a esquerda. Em 1948, numa conferência em Guimarães, Alfredo Pimenta pôde dizer a jovens direitistas: “A imprensa é toda democrática? É. As Emissoras da Rádio são todas democráticas, incluindo a Emissora Nacional? São. Nós não temos Imprensa diária nem temos Emissoras. Somos muito poucos”. Pimenta tinha empregos oficiais, mas estivera preso e era vítima permanente da censura. O regime parecia-lhe um equívoco, dominado por Jorge Botelho Moniz e Marcello Caetano, esses “arautos da democracia”. A habitual obsessão da governação salazarista foi, mais do que corresponder aos entusiasmos de alguns fanáticos, a de atingir a respeitabilidade a partir do centro. A direita radical sempre se escandalizou com o eclecticismo governamental, o corporativismo incompleto, a falta de mobilização nacionalista. Queriam um regime anti-burguês e anti-capitalista. Sofriam pelo negligência com que o regime tratava a direita intelectual, enquando as esquerdas protegiam os seus escritores e artistas (ver por exemplo, A Voz, 13.2.1960). De facto, nunca nenhum escritor da direita alcançou a fama das luminárias oposicionistas. O ressentimento da extrema direita levou uma parte dela a comungar com as esquerdas no anti-salazarismo. Em 1960, durante o seu processo, Aquilino Ribeiro pôde apresentar os Integralistas Luís de Almeida Braga e Rolão Preto como testemunhas abonatórias.
5. Épocas.
No princípio da década de 1930, os debates intelectuais foram dinamizados pelo advento das modas totalitárias inspiradas pela Rússia Soviética e pela Alemanha e Itália fascistas. Comunistas e fascistas disputaram a atenção do meio estudantil e tentaram penetrar o meio operário (os comunistas no sul e os fascistas no noroeste). Fundamentalmente, fascistas e comunistas representavam o mesmo tipo de gente: estudantes, gente das profissões liberais e alguns operários sindicalizados – a mesma fauna que já formara o movimento republicano de antes de 1910. As revistas literárias desempenharam um papel importante nesta mobilização: para os fascistas, revistas como Fradique (Lisboa, 1934-1935), Revelação (1935), e, para os comunistas, as já citadas Diabo, Sol Nascente ou a Vértice (Coimbra, 1942). Identificando-se com modelos estrangeiros, tanto fascistas como comunistas desafiaram os políticos e literatos estabelecidos.
Assim, os Nacional Sindicalistas acabaram por rejeitar o nacionalismo saudosista que era a base da cultura da direita: “Sempre os Gamas, os Albuquerques, os Pachecos … Basta!” (ver o discurso de Rolão Preto em 1935 no banquete dos “intelectuais nacionalistas”). Quanto aos comunistas, o seu alvo principal foi sempre a intelectualidade da esquerda republicana, representada por revistas como a Seara Nova ou a Presença. De facto, as polémicas intelectuais da década de 1930 foram interiores aos dois blocos da direita e da esquerda. Em 1948, por exemplo, Alfredo Pimenta podia avisar os jovens direitistas que o verdadeiro inimigo não era o comunismo. Os comunistas eram até gente digna, que lutava pelas suas ideias. O inimigo mais hediondo eram os situacionistas como Marcello Caetano, que queriam pactuar com a democracia. A acção dos extremistas de ambos os lados, apesar da sua pouca importância numérica, era poderosa. Os comunistas insistiam que a única maneira de garantir não ser salazarista era ser comunista. Os fascistas clamavam que a única maneira de não voltar a 1926 era ser fascista. “Durante anos e anos”, confessou Eduardo Lourenço em 1972, “os intelectuais portugueses [da oposição] viveram num pânico ideológico, viveram no medo de passarem, pelas suas atitudes, pelos seus escritos, pelas suas ideias, por aliados objectivos da ideologia oficial”. Este pavor oposicionista assegurou a influência comunista, baseada numa espécie de chantagem moral: “na medida em que ninguém queria aceitar esse papel, uma ideologia mesmo minoritária mas coerente, bem organizada, do ponto de vista da sua expressão concreta, sob o plano da cultura, podia facilmente estabelecer o seu domínio”. O clamor dos intelectuais fascistas e comunistas facilitou a vida a Salazar, na medida em que tornou difícil ao centro político unir-se e produzir uma alternativa ao regime.
Nos meados da década de 1950, porém, o “fim da ideologia”, celebremente anunciado pelo sociólogo americano Daniel Bell (The End of Ideology. On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties, 1960), pareceu prenunciar o advento dos centristas. A derrota da Alemanha em 1945 desmoralizou os fascistas e, em geral, toda a direita reaccionária. A desestalinização na União Soviética perturbou os comunistas. Em Portugal, durante o período de repressão policial e isolamento político que se seguiu às eleições presidenciais de 1949, o Partido Comunista perdeu muita da sua influência nos meios literários. Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, João José Cochofel, Fernando Lopes Graça desertaram. Alguns destes ex-comunistas aproximaram-se de António Sérgio, de Jaime Cortesão ou de Mário de Azevedo Gomes, revitalizando a velha esquerda republicana. O neo-realismo acabou triturado pelo impasse político e pelas exigências do meio literário, que recusou a falta de estética e de estilo. Revistas como a Távola Redonda(1950-1954) impuseram uma literatura “literária”, sem sectarismos e com grande rigor formal. Novas modas como o Surrealismo e depois o Existencialismo justificaram a evasão de muitos escritores e pintores à órbita comunista. Entretando, o tecnocrata substituía o literato tradicional como tipo do homem sábio. Os engenheiros já então eram a maior produção das institutições de ensino superior portuguesas, ocupando o lugar que o bacharel em leis tivera no século XIX. Descontentes com o suposto “imobilismo” do regime, mas sem simpatias pela “revolução” comunista, convenceram-se de que a via para o futuro estava na mudança do regime por dentro, pacificamente, através da “modernização”. A industrialização da década de 1950 parecia pressagiar essa mudança. Os tecnocratas queriam acelerá-la, mas ao mesmo tempo controlá-la, de modo a minimizar os custos sociais e a maximizar os benefícios. Eram profissionas e competentes, mas pouco políticos. Uma parte passara pela Juventude Universitária Católica, a organização dominante nas universidades durante a década de 1950. Em 1970, organizaram a Sedes, Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (António Alçada Baptista, Ruy Belo, João Salgueiro, Adérito Sedas Nunes, Alfredo de Sousa, etc). Marcello Caetano foi então a sua esperança. Na década de 1950, enquanto ministro da presidência (1955-1958), Caetano já se tornara um pólo de convivência entre o regime e a oposição. Caetano era genro do escritor oposicionista João de Barros. No fim da década de 1940, discordara da linha dura adoptada pelo governo, nomeadamente do saneamento de 24 professores universitários em 1947. Em 1956, num discurso por ocasião da tomada de posse do novo dirigente do SNI, Caetano citou António Sérgio, chamando-lhe um “grande homem de letras”. Caetano tentou ainda atraír artistas e letrados da oposição por ocasião das comemorações do Trigésimo Aniversário da Revolução Nacional. Academias e universidades, onde bastava a circunspecção política para satisfazer o governo, aproveitaram este novo espírito de abertura para estabelecerem pontes com a oposição. Assim, a Academia das Ciências de Lisboa dava o seu prémio literário de 1951 a Alves Redol e em 1955 elegia Fernando Namora para sócio. Nos meados da década, o próprio Partido Comunista tentou descartar algum do seu sectarismo.
Desde o fins da década de 1950, o PCP voltou às Universidades e a Vértice recrutou uma nova geração de colaboradores. A mais acesa guerra cultural volta a travar-se dentro do campo da oposição. Directa ou indirectamente, o Partido Comunista e outros grupos esquerdistas controlavam um apreciável número de editoras e de suplementos literários e a sua censura e dirigismo culturais eram tão ou mais ressentidos do que a censura oficial. No meio intelectual, ser um “agente do imperialismo” tornou-se mais perigoso do que ser “comunista”. Para se compreender a importância das guerras intelectuais, é preciso notar que, excepto nos meios industriais da margem sul do Tejo e nos campos alentejanos, o Partido Comunista não era um partido operário, mas uma organização das classes educadas, baseada na circulação de livros, revistas e panfletos. A estratégia comunista era então romper o aparente convívio entre escritores e artistas de direita e esquerda que se estabelecera durante a crise das ideologias na década de 1950. Em 1965, a atribuição do prémio de romance da SPE a um militante do Movimento Popular para a Libertação de Angola, Luandino Vieira, deve ser interpretada no âmbito dessa estratégia. Alexandre Pinheiro Torres, um dos membros do júri, confessou que o objectivo do prémio era “acabar com um certo convívio risonho entre alguns intelectuais da direita e da esquerda” (“Todos Mentem e Fingem”, em Ler, Outono 1995, nº 35). De facto, a SPE foi dissolvida e a sua sede assaltada por um esquadrão da extrema direita. Nos Estados Unidos da América, Jorge de Sena desconfiou do que se passava: “a que ponto a Sociedade não foi, e de dentro, vítima das clássicas manobras de provocação? Em que medida não estavam interessados em que ela fosse fechada, talvez porque não iriam ganhar umas próximas eleições […]?” [carta a Virgílio Ferreira, 4 de Julho de 1965]. No entanto, a “ditadura cultural” do Partido Comunista nunca conseguiu melhores resultados do que a de António Ferro. A primeira razão estava em que era impossível controlar um meio em expansão. Na década de 1960, o número de estudantes universitários subiu de 23.900 para 49.500. Tal como em todas as universidades europeias e americanas, criou-se em Portugal uma cultura de contestação, à volta sobretudo das guerras no Terceiro Mundo.
A guerra em África também trouxe algum sangue novo ao regime. Escritores anteriormente alinhados com a oposição, como os mentores da chamada “Filosofia Portuguesa” (Álvaro Ribeiro, José Marinho), decidiram alinhar com o governo em nome de uma identidade nacional definida nos termos postos a correr pela Renascença Portuguesa (saudosismo, etc.). A revista 57. Movimento de Cultura Portuguesa (Lisboa, 1957-1962), dirigida por António Quadros, expressou essa adesão, que teve um equivalente mais político na entrada de gente como Alberto Franco Nogueira ou Adriano Moreira no governo. A vitalidade intelectual da direita pode ser medida em revistas como Tempo Presente(Lisboa, 1959-1961). Mas a política ultramarina não chegou para disciplinar os apoiantes do regime. Na década de 1960, o ministro dos estrangeiros, Franco Nogueira, queixava-se sobretudo do Diário da Manhã, “suposto ser o jornal do governo” mas de facto a verdadeira oposição, o que contrastava com a compreensão do “reviralho” tradicional. Assim, a extrema direita manteve-se como uma fonte de oposição ao governo do Estado Novo. Entretanto, a política intelectual do regime consistia apenas em restabelecer a promiscuidade da década de 1950. Em Abril de 1968, Salazar aprovou um plano de Franco Nogueira para que o regime apoiasse Ferreira de Castro e Jorge Amado ao Prémio Nobel da Literatura, “e se este fosse concedido, o triunfo não pertenceria somente às esquerdas”. Com Marcello Caetano, a política de recuperação acentuou-se. O SNI esforçou-se por impôr prémios aos escritores da oposição. Gente da oposição entrou nos meios de comunicação e nas universidades, de tal modo que a extrema esquerda pôde instaurar um verdadeiro reinado em determinadas redacções de jornais e escolas superiores. Em 1972-73, o processo contra as “Três Marias” – as escritoras Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, “três simpáticas jovens de boas famílias” (Jorge de Sena), autoras de Novas Cartas Portuguesas – embaraçou de tal modo o governo que o Ministério Público chegou a pedir a absolvição das acusadas.
6. Política e Níveis de Cultura.
A situação dos intelectuais foi determinada por dois factores contraditórios: por um lado, o crescimento das classes instruídas; por outro lado, a emergência de uma cultura de massas, ligada aos meios de comunicação audio-visuais. Na década de 1960, Portugal ainda era o estado com a menor taxa de escolarização na Europa. No entanto, no caso do ensino secundário, o país acompanhara a explosão escolar detectada no mundo pela UNESCO, estando o seu ritmo de crescimento acima da média. De 1960 para 1974, o número de alunos dos liceus subiu de 112.000 para 238.000. O número de indivíduos que frequentara ou frequentava cursos superiores era de 49.000 em 1960 e de 125.130 em 1970. O consumo expandiu-se. O número de automóveis privados quintuplicou entre 1960 e 1974, de 158.000 para 854.000 unidades. Na primeira metade da década de 1970, saíram três colecções de livros de bolso: Europa-América, Livros RTP (da Editorial Verbo) e Unibolso (de vários editores reunidos). Amplamente divulgadas na televisão, estas colecções devem ter publicado cerca de 300 títulos em conjunto e dão uma ideia da dominância da literatura de oposição. Até a colecção Livros RTP, publicada por uma editorial identificada com o regime, incluíu autores como Fernando Namora. A colecção da Europa-América abriu com o romance Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes, um militante comunista que morrera na clandestinidade. Em 1974, o livro tinha sido reeditado cinco vezes. Mas o romance realista da década de 1940 já tinha sido substituído pelo ensaio historiográfico como a forma cultural favorecida pela intelectualidade de esquerda. Durante a chamada “Primavera Marcelista” (1969-1971), os historiadores de esquerda foram especialmente felizes. A Inquisição e Cristãos Novos de António José Saraiva vendeu 20.000 exemplares no ano de 1969. Para as novas classes médias, livros como o de Saraiva eram quase como que credenciais de inteligência e cultura, a prova de que seu consumidor tinha saído do mundo dos pobres e provincianos, supostamente limitados às “ideias feitas” da escola oficial. É essa distinção que se revela nas sondagens do Instituto Português de Opinião Pública e Estudos de Mercado em 1973 e 1976. O mais óbvio sinal de desafogo económico e instrução era preferir a imprensa estrangeira e desprezar a televisão nacional. A fixação em opiniões supostamente salazaristas (o valor da autoridade, a importância das colónias) crescia conforme se descia na escala da instrução. Era como se o Estado Novo só pudesse contar com o povo. E era isso mesmo que pensavam os ministros. Em Setembro de 1966, Franco Nogueira, que aliás tinha sido um literato com passado oposicionista, anotava no seu diário: “A élite, o chamado escol, os intelectuais, os sujeitos que sabem coisas e têm teorias, mas que ignoram o que é Portugal e não o sentem, ainda hão-de levar este país à ruína, deitando tudo a perder, se o povo não fizer ouvir a sua voz”. Assim, ser culto era ser da oposição, saber ler “entre as linhas” e manter uma arrogância iconoclástica perante as verdades oficiais. A extrema direita intelectual, pelo seu lado, vivia uma ilusão semelhante. O monarquismo, a crítica integrista ao catolicismo “progressista” e o fascínio pelo ocultismo e seus subprodutos nacionais (Quinto Império, Sebastianismo, Saudosismo) tornaram-se a marca de água dos intelectuais da direita, como se pode ver em revistas como Resistência (Lisboa, 1967). Nos piores casos, serviam para literatos de boas famílias se destacarem da “pequena burguesia letrada”.
Em 1972, numa entrevista à revista Vida Mundial sobre os intelectuais (25 de Agosto de 1972), Jorge de Sena insinuava que “a educação ou a cultura ou a conquista de um lugar de intelectual em Portugal têm correspondido automaticamente a uma separação em relação ao povo em geral”. Era este o grande drama da oposição intelectual. Os escritores queixavam-se de que não podiam viver da pena, pelo que culpavam o “obscurantismo” e o “atraso” em que o governo mantinha o país ou, em alternativa, a tacanhez tecnocrática da administração. Lamentavam que o cinema (quase todo americano) e a rádio e a televisão domésticos desviassem público da leitura. O povo, quando aprendia, fazia-o nas escolas do Estado Novo e consumia os produtos da cultura audio-visual, sobre os quais o governo mantinha um controle mais apertado do que sobre os jornais e revistas literárias. O número de receptores de rádio quadruplicou na década de 1950 (848.008 em 1960) e duplicou na de 1960 (1.405.672 em 1970), enquanto o número de aparelhos de televisão decuplicava na década de 1960 (de 46.372 para 473.363 em 1971). Em contrapartida, o número de revistas literárias criadas na década de 1960 (30) equivalia a metade das fundadas na década anterior (72) e estava muito longe dos números de 1900-1930, quando se registaram mais de 100 revistas fundadas por década. Começava o declínio de uma certa forma de vida intelectual. Nenhum escritor podia aspirar à fama das “vedetas da rádio e televisão”. Assim, ser culto passou a consistir em odiar o Fado, Futebol, Fátima, isto é, tudo aquilo que era objecto da cultura de massas. Escritores, como David Mourão-Ferreira, que se dispuseram a escrever para a cantora de fados Amália Rodrigues, foram severamente censurados por comprometer a “cultura”. Quando Amália se atreveu a cantar Camões, os intelectuais “anti-fascistas” vieram para os jornais protestar (ver os depoimentos em Diário Popular, 23.10.1965). Entretanto, os meios estudantis produziram uma alternativa, as “canções de intervenção”, uma espécie de neo-realismo cantado. A intelectualidade tradicional, fundamentalmente literária, tornou-se uma referência para as novas classes médias, mas nunca se reconciliou com as massas. Os intelectuais sempre se tinham batido por uma cultura que unisse todos os portugueses. De facto, não tinham sido mais do que a má consciência das classes instruídas