Crónica, um exemplo

Ir a Paris naquela semana começou por ser um grave problema. A conferência no Centro Cultural Gulbenkian tinha título suficientemente obnóxio — «Eça de Queirós, Machado de Assis: o paralelo obliterado» — para não requerer preparação específica. Porém, assim restando tempo devoluto, que livros levar, visto que chovia? Pensei nos três volumes da recente reedição de Domingos Monteiro, mas logo ao lado vários Tomás de Figueiredo pareciam gemer. E o Abel Botelho? Meu Deus, como ir a Paris sem o Abel Botelho? Ainda segurei resoluto o Teatro Completo de Carlos Selvagem, afinal bem mais resistível do que o Feliz Independente do Padre Teodoro de Almeida, que caiu da fila de trás da estante, arrastando a Harpa do Crente do bom Herculano. Por outro lado, relera João Araújo Correia há pouco. Afonso Duarte, Assis Esperança, Luís Cajão, Sidónio Muralha, Papiniano Carlos, Políbio Gomes dos Santos acotovelavam-se na estante, reclamando uma oportunidade. De supetão, já o táxi gania na rua, deitei a mão aos volumes preciosos do Marcelo Gama, poeta pseudo-symbolista e brasileiro que ninguém conhece, e eu também não, mas morreu por adormecer no bonde. Escolha errada, claro, porque não viria a ter tempo nem para Guilherme de Azevedo, já enfiado na mala de véspera (que diabo, sempre são Crónicas de Paris). No aeroporto, o de Lisboa, esqueci num café a maleta em que arrumara outros livros indispensáveis (um tratado de revisão da narratologia, um pequeno dicionário de semiótica, não fosse o diabo tecê-las, um ensaio de filosofia analítica sobre o problema da intenção, um ensaio de filosofia moral sobre o problema da intenção, uma desinteressante conferência de Popper, uma tese portuguesa de literatura comparada, quase inédita, um paralelo entre Bloom e Steiner da autoria de obscuro académico irlandês, três romances portugueses recentes e diversos recortes de recensões de livros de poesia portugueses recentes). Afortunadamente, a funcionária do café tinha assistido ao meu curso de Literatura Brasileira nas Caldas da Rainha, na semana anterior; foi-lhe fácil, detectado o esquecimento, localizar o voo e levar-me a maleta ao avião. Muito gentil. Também gentilíssima, a hospedeira, ou assistente de bordo, minha antiga aluna na Universidade Nova: teve a amabilidade de me reconhecer e a maior de me confessar, enquanto pousava o tabuleiro do rancho, que devia às minhas aulas a facilidade com que, muitos anos passados, ainda destrinçava as subtilezas da Poética de Aristóteles.

Compreendem que isto contribuísse para desvanecer o dissabor da mala perdida. E a viagem, por acaso, até decorreu sofrivelmente. Chegado ao aeroporto, o de Orly, encontro, primeiro, Nuno Júdice, que esperava Hélia Correia, afinal passageira do mesmo voo (o mundo vai sendo pequeno). E encontro depois, e foi o começo da canseira, o meu tradutor francês, Ken Vandermark, na verdade um canadiano generoso, radicado há muitos anos em Paris. Não era a mim que esperava (não o tinha avisado…), mas ao pai, sujeito que me pareceu um tanto antipático e vinha acabar em Paris as férias que começara em Lisboa. O Ken pulou positivamente de alegria e, para a explicar, logo sacou de uma lista de palavras que não conseguia traduzir para francês: alçapremar, assolapado, azoratado, braquígrafo, brequefeste, cacotecnia, deslendear, divertículo, embair, esquinado, esquístico, filodoxo, fímbria, e por aí fora alfabeticamente. Impunha-se ajudá-lo, e ali mesmo. Lá ficámos no aeroporto até ao entardecer, mal sentados, tentando encontrar termos franceses para cada caso português. Conseguimos, às vezes com certo embaraço de escolha. Confesso que receei, de começo, pela qualidade da tradução, tantas eram as dúvidas, mas Ken convenceu-me de que não era nada exagerada a minha noção da sua competência de tradutor. Alívio, claro. No entanto, que canseira…

De tal modo aliás, que mal tive tempo para largar a bagagem no hotel e correr a jantar com Derrida. Estava combinadíssimo. Não podia faltar, embora pudesse diferir a chegada: o homem tinha adiado a partida para Irvine para poder encontrar-me. Desilusão, porém; já não nos víamos há meses, e em vez de me esclarecer duas ou três perplexidades derivadas dos seus últimos livros — e que não lhe suscitaram interesse nenhum —, e depois de perguntar se era verdade que o novo primeiro-ministro tinha sido aluno do Steiner, ocupou o tempo todo a pedir-me notícias dos amigos portugueses, como está fulano, onde anda sicrana que não escreve, com quem casou beltrano, quem morreu, quem mudou de casa, quem se divorciou… Uma vulgaridade. Se calhar, contasse eu o modo peculiar como nos tornámos amigos, o que agora não calha, ninguém estranharia.

Demais, chovia, e muito. Já agora, vá, escreva-se tudo: entrei irritadíssimo na conferência, e errei logo a data d’Os Maias. Mau sinal. Em regra, a minha memória é prodigiosa, ao menos para datas, títulos e autores. (Cheguei a saber de cor a tábua bibliográfica de uma monografia sobre Os Lusíadas, só por divertimento.) A senhora da primeira fila, logo que corrigi e me desculpei — e foi logo —, fez um sorriso muito doce, deixou cair a mão num levíssimo gesto (um e outro, de resto, reiterados, até sublinhados, quando no final me pediu que autografasse exemplares de todos os meus livros, incluindo os esgotados, que carregava num saco indistinto da Fnac, talvez por pudor). Aí ganhei ânimo, e levei aquilo de enfiada, seguro e convicto. Muito cumprimentado no final, podia ter sido uma longa ou quando menos média noite de glória, ou de simples regozijo intelectual, não fosse a modéstia e a necessidade de largar dali para os Campos Elíseos, onde um grupo de críticos americanos e ingleses, apadrinhados e reunidos por dois franceses, Louis Sclavis e Michel Portal, me esperava num bistro esconso para um debate sobre… A Cidade e as Serras. Lá estavam Don Byron e Ben Allison, da Columbia, Dave Douglas e Myra Melford, de Yale, Muhal Richard Abrams, da UCLA, Anthony Braxton e Marty Ehrlich, de Berkeley, e até Joey Baron e Greg Cohen, da Johns Hopkins (além dos mais do que conhecidos Barry Guy, de Cambridge, Barre Philips, Evan Parker e John Surman, de Oxford). Um despotismo de cérebros! E que debate, que elevação, que capacidade de invenção… E a noite toda. Uma canseira.

Enfim no hotel, dir-se-ia ter alguém à espera no quarto: um homem sombrio, que julguei ouvir apresentar-se como Bento Santiago, ou Dom Casmurro. Era demais. Resolvi antecipar o regresso. Continuava a chover, até o presidente Bush tinha ido embora… Sabe Deus como consegui fazer a viagem sem encontrar ninguém conhecido e até folhear sossegado um jornal, que me deram no avião. Cheguei. No aeroporto, o de Lisboa, li os anúncios do Centro Comercial Colombo enquanto esperava pelas malas. Já em casa, soube que o vizinho do lado começara com obras, de resto ouviam-se os martelos no pico da excitação. Ocorreu-me que andava há semanas para chamar um canalizador. Sejamos claros: eram outros tempos. Ainda não tinha começado o mundial de futebol, o sr. Manuel Alegre decerto ignorava que lhe caberia imortalizar o Figo em rima predominantemente toante.

Desmi(s)tificar Derrida

Em vários momentos da sua carreira tem Derrida manifestado perplexidade em relação à realidade teórica e académica norte-americana. Há quatro anos atrás, num encontro com Rorty em que se discutia o tema “Desconstrução e Pragmatismo”, confessou a sua “incompreensão em relação ao que se passa nos Estados Unidos, quer se trate do pensamento de Rorty, ou do que se passa no seio do desconstrucionismo americano, ou de uma ignorância da minha parte em relação à sua tradição”. Esta confessada incompreensão nada tem a ver com ignorância: é sabido o quanto Derrida, desde o início, sempre investiu neste país; muito antes do famosíssimo colóquio “The Languages of Criticism and the Sciences of Man”, que colocou a “teoria crítica” e a universidade de Johns Hopkins na vanguarda da discussão académica no âmbito das humanidades, já Derrida por cá tinha passado várias vezes (uma das quais para semi-furtivamente celebrar esponsais com Marguerite Acouturier em Boston). Por outro lado, não me parece que releve da ignorância o bem informado testemunho que nos lega num texto de 1987, incluído na algo provocadora colectânea “The States of “Theory”:

O princípio da desordem taxonómica a que me venho referindo pode dar origem a traduções ordeiras e calculadas ou então a colapsos cómicos, com que por vezes deparamos em programas de cursos, palestras, às vezes em livros. É a serialização de coisas que são tão heterogéneas mas mesmo assim postas numa relação de co-incorporação contaminante e teratológica como a psicanálise, o pós-estruturalismo, o pós-modernismo, o feminismo, o Marxismo, etc. Esta teratologia é a nossa normalidade.

Esta teratologia tem um nome antigo: ecletismo. Atitude execrada nos meios filosóficos (e daqui o desconforto de Derrida em relação à realidade americana), o ecletismo conhece hoje em dia uma cotação elevadíssima no âmbito dos estudos literários norte-americanos, âmbito que, como é sobejamente sabido, é aquele em que a desconstrução tem ou teve o seu impacto mais assinalável. E este acidente da fortuna acabou por condicionar a leitura europeia da desconstrução, que, com raras excepções, repete as trivialidades e erros de perspectiva que hoje fazem parte do património linguístico de qualquer americano que tenha passado pela universidade. A associação da desconstrução ao pós-modernismo ou a uma variante de “teoria crítica” são apenas dois dos mais correntes clichés que circulam dos dois lados do Atlântico. E a boa fortuna do termo “pós-estruturalismo”, que, como o próprio Derrida assevera, era “desconhecido em França até ao seu “retorno” dos Estados Unidos”, é um sintoma indisfarçável da importância deste comércio transatlântico.

Recebido neste contexto, o livro de Joseph Kronick reúne todas as condições para poder vir a alterá-lo substancialmente. Para já, tem passado mais ou menos despercebido, não havendo dele ainda qualquer recensão digna de nota. Talvez se ressinta da sobre-exposição a títulos deste género a que têm sido votados os americanos nos últimos quinze anos. Mas este livro é de facto uma autêntica lufada de ar fresco para quem tenha vindo a seguir (na medida do possível) atentamente a literatura secundária que sobre a desconstrução tem surgido, ou tão só para quem, sem preocupações académicas, procura apenas entender o que se passa. E o que se passa é que finalmente alguém se dispôs a ler responsável e atentamente os textos de Derrida, no original francês (prática cada vez mais em desuso num país em que tudo o que é importante se traduz a menos de um ano de distância em relação à data de publicação original, e também sem dúvida devido à progressiva perda de importância da língua francesa no mundo), e as consequências deixam-se ver de imediato. O tom é marcado logo na primeira página: “Este livro tenta situar a “literatura” no pensamento de Derrida, o que é algo muito diferente de aplicar a desconstrução a textos literários ou de interpretar os seus escritos como literários” (1). Trata-se aqui de algo mais do que um mero esclarecimento heurístico. O que nos é indicado logo de seguida:

Desde logo, é necessário salientar que “literatura” ou “escrita literária” são termos frequentemente usados por Derrida num sentido muito diferente da nossa noção convencional de literatura. Não estou a propor aqui um estudo de “metodologia” desconstrutiva nem sequer um ensaio de crítica literária, mas antes uma leitura de “literatura” nos textos de Derrida. Com isto não pretendo dizer que os seus escritos, e nomeadamente Glas ou La Carte Postale são mais literários do que filosóficos, nem pretendo sugerir que a literatura enquanto tal desencadeia uma crítica ou uma desconstrução de categorias filosóficas-veremos que não existe algo como a literatura enquanto tal. Proponho ao invés que a literatura é não apenas algo distinto das “belles lettres” ou até daqueles modos da escrita que designamos como poesia, ficção e drama, mas que é sobretudo aquilo a que Derrida prefere chamar “escrita literária”, isto é, aquilo que transe a experiência.”

O primeiro dos grandes “mots d’ordre” a merecer re-leitura é o da desconstrução como uma metodologia da crítica literária. Inúmeras vezes Derrida insistiu em que a desconstrução não é nem uma análise nem uma crítica, e que, ao invés, crítica (no sentido convencional ou transcendental do termo) e análise são motivos sujeitos à desconstrução. A desconstrução, como ele diz na sua “Carta a um amigo japonês”, é “aquilo que tem lugar” (5), independentemente da deliberação, consciência ou organização de um sujeito, ou da modernidade. Não obstante estes recorrentes esclarecimentos, vários foram os departamentos de inglês que nos Estados Unidos se inventaram e re-inventaram enquanto bastiões de uma teoria crítica e literária desconstrutivas. As consequências variam entre o interessante e o patético.

O segundo mito revisitado com grande oportunidade por Kronick é o da divisão da carreira de Derrida em duas fases mais ou menos distintas: a inicial, mais claramente filosófica, e a actual (iniciada por obras como Glas), mais marcadamente “literária”. Em solo americano, foi Rorty o grande impulsionador desta teoria. No já referido volumeDeconstruction and Pragmatism, Rorty refere-se a essa hipotética primeira fase como a uma espécie de propedêutica filosófica (mais académica e pragmática e, portanto, mais “pública”) à fase que se segue, mais “literária”, mais relevante para o domínio do privado. Ora, é justamente esta dicotomia do público/privado, enquanto muleta da distinção filosofia/literatura, aquilo que merece a suspeita de Derrida, e que Kronick pretende desmi(s)tificar neste livro. No texto que constitui a contribuição de Derrida para o volume supra-mencionado, podemos ler:

Eu nunca tentei confundir a literatura e a filosofia ou reduzir a filosofia à literatura. (…) Tento ser atento a esta distinção tanto quanto possível. A literatura interessa-me, supondo que, à minha maneira, a pratico ou a estudo nos outros, precisamente como algo completamente distinto da expressão da vida privada. A literatura é uma instituição pública de invenção recente, com uma história comparativamente curta, governada por toda a espécie de convenções ligadas à evolução da lei, que em princípio, permite tudo dizer. Assim, o que define a literatura como tal, no interior de uma certa história europeia, está intimamente ligado a uma revolução na lei e na política: a autorização de tudo dizer publicamente. Por outras palavras, eu não posso separar a invenção da literatura, a história da literatura, da história da democracia. (80)

O que Kronick nos vem dizer é que, da mesma forma que o conceito de escrita em Derrida não coincide com a transcrição fonética ou notação linear, também a escrita literária não deve ser entendida como “belles lettres” ou mera literariedade do texto. A literatura é o remarcar da institucionalidade em geral, isto é, a um tempo inscrição e transgressão da instituição. Num sentido, a literatura é uma instituição de invenção recente. Noutro, a literatura é o resto ou a reserva que não pode ser subsumida ou totalizada na sua instituição. Por isso a literatura é aquilo que acontece sempre que há o vestígio, a marca: ela re-marca uma relação com o fora que não pode ser re-presentado no presente mas que se promete ao futuro, um futuro por vir. Também por esta razão a desconstrução convida a pensar a literatura no seu sentido convencional, mas sobretudo a repensá-la na sua conjugação com as noções derrideanas da singularidade, responsabilidade, a lei, destruição, invenção e tempo. De notar que o “por vir” de Derrida não é o futuro como modalidade do presente (e por isso Rorty não explica bem o que é a desconstrução ao relegá-la, no texto de Desconstrução e Pragmatismo, para o domínio do utópico), mas antes aquilo que descreve a estrutura da experiência, ou, como diz Kronick, aquilo que transe a experiência. A literatura deve ser pensada como uma condição para a vinda do outro. Neste sentido, não só ela está intimamente ligada à ética, como também ao futuro: literatura, ética e futuro são como que dimensões diferentes de um mesmo termo. Kronick torna claro que, para entender o papel da literatura em Derrida é preciso antes de mais perder de vista a noção convencional que dela temos (e, consequentemente, deixar de avaliar a importância da literatura em Derrida pelo prisma da alegada “dimensão criativa” ou “performance literária” dos seus textos) e começar a entendê-la como essa “estranha instituição” segundo a qual tudo se pode dizer.

Esta formulação em forma de epíteto surge numa longa e “canónica” entrevista que Derrida deu a Derek Atridge em 1992 e que com o título “This Strange Institution Called Literature” abre o volume por este organizado, de nome Acts of Literature. O livro de Joseph Kronick pode ser lido como um longo comentário a esta entrevista, proposta como pórtico de entrada para a leitura da totalidade da obra do filósofo francês, da qual procura mostrar a unidade e profunda coerência. Resulta de um trabalho paciente de escrutínio de 44 de entre as muitas mais publicações de Derrida, e os seus cinco capítulos (incluída a introdução) obedecem a um esquema preciso: levantamento da questão, inscrição pessoal e desenvolvimento. O primeiro capítulo, “Aporetic Conclusion: The Law of the Name”, procura demonstrar como o estatuto da literatura enquanto evento que “afirma a vinda do outro”, evento “que nos inventa” e que “olha pelo futuro” (36) depende do seu poder de dizer tudo, isto é, não na sua capacidade representativa (algo que ela partilha com os restantes discursos), mas na sua exemplaridade abissal da infinita referencialidade e diferimento da marca (37). No segundo capítulo, “Edmond Jabès and the Question of the Jewish Unhappy Consciousness: Reflections on Deconstruction”, Kronick pretende explorar a questão da literatura enquanto “questão de ontologia e gramática” (72), enquanto questão do “ser dividido da literatura”, entre “a época do ser” e uma “escrita ilegível”, isto é, como pertencente a uma “idade outra que a idade do livro”. Para tal, socorre-se da leitura derrideana da obra de Edmond Jabès, e nomeadamente da aproximação que Derrida estabelece entre o Livre des Questions e a Fenomenologia do Espírito. Este é um dos nós górdios deste livro, na medida em que cumpre um dos seus grandes objectivos estratégicos: singularizar a obra de Derrida em relação àquilo a que se chama a “desconstrução na América”, e às leituras “desconstrutivas” da obra de Jabès. Mas também, e isto interessará sem dúvida aos leitores portugueses, em relação às leituras “pós-modernas” da mesma. Deste modo o livro abre com muita pertinência um debate ainda não havido, ou talvez falseado nas suas premissas: o da relação entre a desconstrução e o pós-modernismo. Nos Estados Unidos Edmond Jabès é considerado um autor pós-moderno, e, por via da sua associação indirecta à desconstrução (i.e., pelo facto de Derrida ter escrito dois textos sobre ele), tornou-se vulgar ler toda a “escrita judaica” contemporânea como a um tempo “desconstrutiva” e “pós-moderna”. Os critérios desta consideração permanecem, o mais das vezes, guardados no segredo dos deuses, ainda que o slogan que corre como moeda corrente é o de que a obra de Jabès, por via da sua dimensão fragmentária, efectua uma crítica da representação, o que quer que por isto se entenda. Ora, aquilo que a leitura de Derrida mostra claramente é que a inversão operada no Livre des Questions entre o Deus logocêntrico cristão e o Deus ausente do judaísmo não perturba a determinação mimética e filosófica da literatura: Jabès e o seu texto fragmentário representam a ausência como ideia constitutiva do livro. O Livre des Questions, enquanto representação de uma ideia (a do livro como todo) mantém-se nos limites da representação mimética (88). Daí a aproximação à Fenomenlogia do Espírito. Mas mesmo que a fragmentariedade da obra de Jabès operasse uma suspensão da dimensão representativa da linguagem, ainda isso não faria dela uma “obra desconstrutiva”: procurar suspender a dimensão representativa da linguagem através da “literariedade” da literatura seria ainda obedecer à determinação platónica da mimesis. Por outro lado, acabar com a mimesis é algo que Derrida continuamente rejeita como o impossível. A desconstrução procura deslocar o pensamento tradicional (platónico/heideggeriano) da mimesis, não destruí-lo. E esse deslocamento faz-se -para além do pathos da “ultrapassagem da metafísica”.

Os restantes dois capítulos propõem uma leitura de alguns dos primeiros textos de Derrida, nomeadamente Husserl et l’origine de la geométrie e La Voix et le phenoméne. O terceiro capítulo, “Writing in the Nuclear Age”, explica a ideia de apocalipse e a versão não-teleológica que Derrida oferece desse termo, e procura esclarecer a ideia de escrita como “o nome para a unidade estrutural de idealidade e repetição, em que a última torna possível e marca os limites da primeira.” (134). Trata-se de deslocar a idealidade tal como Husserl e a fenomenologia a definiram, sem no entanto dela abdicar de todo. Este é talvez o capítulo mais denso do livro, com formulações mais crípticas e uma linguagem a meu ver um tanto deselegante. O quarto e último capítulo, “Monstruous Writing: The Gift of Literature”, regressa à entrevista com Derek Atridge e procura problematizar o pensamento derrideano do dom (contrastando-o com o de Heidegger) na sua relação com a questão da literatura. Aquilo que a literatura dá, e que não se pode situar em nenhuma modalidade do presente, é a possibilidade de tudo dizer: algo que vai a par com a invenção da democracia. Este dom é mais antigo do que o Ser, e a literatura é também a crónica desse tempo em que o dom se dá na aporia da sua própria (im)possibilidade.

Joseph Kronick abre com este livro um debate que urge continuar, dos dois lados do Atlântico. Agora que, pelo menos no espaço americano, esmorecem o espírito proselitista e outras paixões menores, talvez o futuro nos traga uma outra paixão: a da leitura.