Para não sermos “Calibans” …

Entre dicotomias como a paixão e o ódio, a liberdade e a escravidão, a riqueza e a pobreza, o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, existe um imenso universo de outros sentimentos e conceitos. Ele é composto por estrelas de diferença, gradações dialéticas, contradições, paradoxos.

Resgatar a imagem deste universo é como pingar uma gota de óleo num copo d’água. As diferentes gotículas desmembradas pairam sobre a superfície, resistindo uma diluição. O mesmo tem acontecido ao longo da história dos diversos povos da Terra. São inúmeras sociedades disciplinadas por padrões políticos, religiosos e econômicos, onde a igualdade é a maior meta, o copo d’água. Essa igualdade está chapada em dois sistemas repressores principais: o da educação e o da produção. São discursos autoritários, dos detentores do poder que, em ambos os processos, ditam os padrões a serem seguidos, copiados e/ou imitados pelas pessoas. Nesse tipo de fluxo estúpido, os artistas contestadores sempre tendem a desempenhar o papel das gotículas de óleo, jamais mesclando-se: porque têm algo muito diferente em si, porque recusam-se a diluir-se no todo, a desaparecerem tal qual lixo cósmico. Viajam para o infinito, sem porto de chegada definitivo. Viajam os seus sonhos de resistência, buscam espaços especiais, contemplando, além do horizonte turvo, lugares de diferença.

Quando, em 1997, Dario Fo dedicou o seu prêmio Nobel a todos os artistas perseguidos do mundo, fez, ao mesmo tempo, um ato político e um pronunciamento de incentivo à diferença. Fo sugere que, se não mantivermos viva a idéia de transcender o conhecimento já institucionalizado, estaremos trabalhando contra o desenvolvimento das artes.

Aplicando esta reflexão ao teatro brasileiro, a propósito do final do VII Festival de Curitiba, fica um vazio imenso em relação ao que possa vir a ser uma produção cultural com cara de Brasil. Tivemos adaptações interessantes, por causa da apropriação de materiais e signos culturais brasileiros, em Ella e Sob o Sol em meu Leito. A pesquisa do Grupo Pia Fraus Teatro merece todos os destaques pela sua profundidade filosófica. Na maioria das outras peças nacionais não houve, porém, algo que parecesse um contra-discurso brasileiro, isto é, algo que transcenda a submissão cultural e articule, filosoficamente, um imaginário brasileiro. Falta aquela ambição maravilhosa e paradoxal de Augusto de Campos, em seu poema ‘Póstudo’ publicado, na Folha de São Paulo, em 27/01/85:

 

QUIS
MUDAR TUDO
MUDEI TUDO
AGORAPÓSTUDO
EXTUDO
MUDO

A submissão cultural é um problema antigo, considerado muito bem por Caetano Veloso em seu livro Verdade Tropical (São Paulo: Schwarcz, 1997; ex. p. 114.) No Festival de Teatro de Curitiba, em 1997, a peça Viva o Povo Brasileiro, dirigida por Regina Bertolla, elaborou, através da pesquisa antropológica, uma grande representação das contradições decorrentes do multiculturalismo em nosso país.

Caliban, em 1998, seria uma peça típica para a contestação, mas, ao invés disso, apresenta a coitadização (sic, neologismo) do índio brasileiro, entre a submissão e o desejo de vingança, tão vítima do colonialismo quanto o personagem de Shakespeare. Para a platéia de descendência européia, resta a catarse pela culpa e a vergonha de ser branca. Para a platéia de outras etnias, talvez uma sensação de espanto e desconforto. De qualquer ponto de vista, um profundo constrangimento histórico.

O grande desafio da não-submissão cultural consiste em não aceitar as tarefas simplistas do imitar, copiar e repetir. Criar a partir de paradoxos e contradições, transcodificar e encontrar discursos alternativos nas artes, por outro lado, não significa desdenhar ou rejeitar conhecimento prévio, mas reelaborá-lo filosoficamente, para além do canibalismo.

 

Ph.D. em Literatura Dramática, EUA. Professora do Depto. de Teatro da Faculdade de Artes do Paraná (FAP, Curitiba). Membro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística, Grupo de Trabalho de Dramaturgia e Teatro (ANPOLL/ UNICAMP).

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