Em vários momentos da sua carreira tem Derrida manifestado perplexidade em relação à realidade teórica e académica norte-americana. Há quatro anos atrás, num encontro com Rorty em que se discutia o tema “Desconstrução e Pragmatismo”, confessou a sua “incompreensão em relação ao que se passa nos Estados Unidos, quer se trate do pensamento de Rorty, ou do que se passa no seio do desconstrucionismo americano, ou de uma ignorância da minha parte em relação à sua tradição”. Esta confessada incompreensão nada tem a ver com ignorância: é sabido o quanto Derrida, desde o início, sempre investiu neste país; muito antes do famosíssimo colóquio “The Languages of Criticism and the Sciences of Man”, que colocou a “teoria crítica” e a universidade de Johns Hopkins na vanguarda da discussão académica no âmbito das humanidades, já Derrida por cá tinha passado várias vezes (uma das quais para semi-furtivamente celebrar esponsais com Marguerite Acouturier em Boston). Por outro lado, não me parece que releve da ignorância o bem informado testemunho que nos lega num texto de 1987, incluído na algo provocadora colectânea “The States of “Theory”:
Recebido neste contexto, o livro de Joseph Kronick reúne todas as condições para poder vir a alterá-lo substancialmente. Para já, tem passado mais ou menos despercebido, não havendo dele ainda qualquer recensão digna de nota. Talvez se ressinta da sobre-exposição a títulos deste género a que têm sido votados os americanos nos últimos quinze anos. Mas este livro é de facto uma autêntica lufada de ar fresco para quem tenha vindo a seguir (na medida do possível) atentamente a literatura secundária que sobre a desconstrução tem surgido, ou tão só para quem, sem preocupações académicas, procura apenas entender o que se passa. E o que se passa é que finalmente alguém se dispôs a ler responsável e atentamente os textos de Derrida, no original francês (prática cada vez mais em desuso num país em que tudo o que é importante se traduz a menos de um ano de distância em relação à data de publicação original, e também sem dúvida devido à progressiva perda de importância da língua francesa no mundo), e as consequências deixam-se ver de imediato. O tom é marcado logo na primeira página: “Este livro tenta situar a “literatura” no pensamento de Derrida, o que é algo muito diferente de aplicar a desconstrução a textos literários ou de interpretar os seus escritos como literários” (1). Trata-se aqui de algo mais do que um mero esclarecimento heurístico. O que nos é indicado logo de seguida:
O segundo mito revisitado com grande oportunidade por Kronick é o da divisão da carreira de Derrida em duas fases mais ou menos distintas: a inicial, mais claramente filosófica, e a actual (iniciada por obras como Glas), mais marcadamente “literária”. Em solo americano, foi Rorty o grande impulsionador desta teoria. No já referido volumeDeconstruction and Pragmatism, Rorty refere-se a essa hipotética primeira fase como a uma espécie de propedêutica filosófica (mais académica e pragmática e, portanto, mais “pública”) à fase que se segue, mais “literária”, mais relevante para o domínio do privado. Ora, é justamente esta dicotomia do público/privado, enquanto muleta da distinção filosofia/literatura, aquilo que merece a suspeita de Derrida, e que Kronick pretende desmi(s)tificar neste livro. No texto que constitui a contribuição de Derrida para o volume supra-mencionado, podemos ler:
Esta formulação em forma de epíteto surge numa longa e “canónica” entrevista que Derrida deu a Derek Atridge em 1992 e que com o título “This Strange Institution Called Literature” abre o volume por este organizado, de nome Acts of Literature. O livro de Joseph Kronick pode ser lido como um longo comentário a esta entrevista, proposta como pórtico de entrada para a leitura da totalidade da obra do filósofo francês, da qual procura mostrar a unidade e profunda coerência. Resulta de um trabalho paciente de escrutínio de 44 de entre as muitas mais publicações de Derrida, e os seus cinco capítulos (incluída a introdução) obedecem a um esquema preciso: levantamento da questão, inscrição pessoal e desenvolvimento. O primeiro capítulo, “Aporetic Conclusion: The Law of the Name”, procura demonstrar como o estatuto da literatura enquanto evento que “afirma a vinda do outro”, evento “que nos inventa” e que “olha pelo futuro” (36) depende do seu poder de dizer tudo, isto é, não na sua capacidade representativa (algo que ela partilha com os restantes discursos), mas na sua exemplaridade abissal da infinita referencialidade e diferimento da marca (37). No segundo capítulo, “Edmond Jabès and the Question of the Jewish Unhappy Consciousness: Reflections on Deconstruction”, Kronick pretende explorar a questão da literatura enquanto “questão de ontologia e gramática” (72), enquanto questão do “ser dividido da literatura”, entre “a época do ser” e uma “escrita ilegível”, isto é, como pertencente a uma “idade outra que a idade do livro”. Para tal, socorre-se da leitura derrideana da obra de Edmond Jabès, e nomeadamente da aproximação que Derrida estabelece entre o Livre des Questions e a Fenomenologia do Espírito. Este é um dos nós górdios deste livro, na medida em que cumpre um dos seus grandes objectivos estratégicos: singularizar a obra de Derrida em relação àquilo a que se chama a “desconstrução na América”, e às leituras “desconstrutivas” da obra de Jabès. Mas também, e isto interessará sem dúvida aos leitores portugueses, em relação às leituras “pós-modernas” da mesma. Deste modo o livro abre com muita pertinência um debate ainda não havido, ou talvez falseado nas suas premissas: o da relação entre a desconstrução e o pós-modernismo. Nos Estados Unidos Edmond Jabès é considerado um autor pós-moderno, e, por via da sua associação indirecta à desconstrução (i.e., pelo facto de Derrida ter escrito dois textos sobre ele), tornou-se vulgar ler toda a “escrita judaica” contemporânea como a um tempo “desconstrutiva” e “pós-moderna”. Os critérios desta consideração permanecem, o mais das vezes, guardados no segredo dos deuses, ainda que o slogan que corre como moeda corrente é o de que a obra de Jabès, por via da sua dimensão fragmentária, efectua uma crítica da representação, o que quer que por isto se entenda. Ora, aquilo que a leitura de Derrida mostra claramente é que a inversão operada no Livre des Questions entre o Deus logocêntrico cristão e o Deus ausente do judaísmo não perturba a determinação mimética e filosófica da literatura: Jabès e o seu texto fragmentário representam a ausência como ideia constitutiva do livro. O Livre des Questions, enquanto representação de uma ideia (a do livro como todo) mantém-se nos limites da representação mimética (88). Daí a aproximação à Fenomenlogia do Espírito. Mas mesmo que a fragmentariedade da obra de Jabès operasse uma suspensão da dimensão representativa da linguagem, ainda isso não faria dela uma “obra desconstrutiva”: procurar suspender a dimensão representativa da linguagem através da “literariedade” da literatura seria ainda obedecer à determinação platónica da mimesis. Por outro lado, acabar com a mimesis é algo que Derrida continuamente rejeita como o impossível. A desconstrução procura deslocar o pensamento tradicional (platónico/heideggeriano) da mimesis, não destruí-lo. E esse deslocamento faz-se -para além do pathos da “ultrapassagem da metafísica”.
Os restantes dois capítulos propõem uma leitura de alguns dos primeiros textos de Derrida, nomeadamente Husserl et l’origine de la geométrie e La Voix et le phenoméne. O terceiro capítulo, “Writing in the Nuclear Age”, explica a ideia de apocalipse e a versão não-teleológica que Derrida oferece desse termo, e procura esclarecer a ideia de escrita como “o nome para a unidade estrutural de idealidade e repetição, em que a última torna possível e marca os limites da primeira.” (134). Trata-se de deslocar a idealidade tal como Husserl e a fenomenologia a definiram, sem no entanto dela abdicar de todo. Este é talvez o capítulo mais denso do livro, com formulações mais crípticas e uma linguagem a meu ver um tanto deselegante. O quarto e último capítulo, “Monstruous Writing: The Gift of Literature”, regressa à entrevista com Derek Atridge e procura problematizar o pensamento derrideano do dom (contrastando-o com o de Heidegger) na sua relação com a questão da literatura. Aquilo que a literatura dá, e que não se pode situar em nenhuma modalidade do presente, é a possibilidade de tudo dizer: algo que vai a par com a invenção da democracia. Este dom é mais antigo do que o Ser, e a literatura é também a crónica desse tempo em que o dom se dá na aporia da sua própria (im)possibilidade.
Joseph Kronick abre com este livro um debate que urge continuar, dos dois lados do Atlântico. Agora que, pelo menos no espaço americano, esmorecem o espírito proselitista e outras paixões menores, talvez o futuro nos traga uma outra paixão: a da leitura.